ironia, ainda que tardia

Wednesday, August 30, 2006

La Siesta

Daniel Soleil Noir

Serviu-se do corpo dela como se ele também tivesse sido posto à mesa. Atirou-se contra aquela pele, esfaimado depois de tanto tempo. Suava devido ao calor e por causa do excesso de libido que havia tomado conta do ambiente. E ao adiantar-se sobre aquela derme crua, amassou-lhe os seios com seu torso nu.

Embora seminua, ela apenas fatiava os tomates sobre a mesa da cozinha. Estava completamente absorvida pelo prato que preparava para ambos. Nem se dera conta, por isso, que ele estava a observá-la naquele momento, depois de terminada a pescaria, milhas e milhas distante da praia.

Os peixes que trouxera já estavam em uma bacia nos fundos da casa. E por conta do calor fortíssimo, foi socorrer-se na cozinha, em busca de um copo d’água. Sabia que ela estaria lá, mas não dera muita atenção a isso, pelo menos a princípio. Queria apenas conter o próprio suor. Mas ao vê-la, percebeu que o efeito foi completamente oposto.

Ela assustou-se ao ter a cintura cingida pelos seus braços rijos. Sua primeira reação foi largar a faca e os tomates sobre a velha tábua de madeira. Mas permitiu que o corpo do amante, almiscarado pela própria transpiração, envolvesse sua silhueta - embora aquilo interrompesse o preparo da comida.

Enquanto se beijavam, as mãos dele apressavam-se em percorrer-lhe os quadris. E aos poucos ia oferecendo-se como se ela fosse a própria ceia, deitando-se ela mesma sobre a mesa, confirmando a impressão inicial.

Os dois tinham a pele temperada pelo sol daqueles dias. Ela, contudo, só estava um pouco corada, com o rosto tendo ganhado apenas um tom suave de vermelho. Ele, ao contrário, tomara um aspecto completamente dourado, quase como se sua derme pudesse ganhar também a cor daqueles raios de sol.

Naquele exato instante, os amantes abdicaram de qualquer etiqueta à mesa e contorceram-se como bichos sobre a toalha de pano, que tinha acabado de sair do armário. Ela a havia esticado ainda pela manhã, mas estava longe de querer lamentar a hipótese de que viesse a trocá-la de novo mais tarde.

Não demorou muito para que ele recebesse como uma dádiva o gozo da amante debaixo de seu corpo. Os pêlos dela crispando-se debaixo dos seus pêlos... Chegou a erguer um pouco o torso antes de mergulhar enfim, e também se entregar ao momento daquele clímax em plena hora do almoço.

“Durante aquelas horas mortas, em que meu destino torto me afastava de você, era só com este momento que eu sonhava. Mas era preciso contar o tempo, subtrair as horas, exigir do relógio a pressa que ele não poderia me dar. Hoje eu sei que nada poderia me alimentar melhor a alma que o seu êxtase”.

O coração dela batia a uma velocidade tamanha, num ritmo a ponto de inflar-lhe o peito sob o peito ele. E era justamente com a respiração dele que ela agora refrescava o rosto exaltado pelos minutos anteriores. Porém, não seguiu o exemplo do amante; evitou as palavras, sem forças para dizer qualquer coisa.

Uma brisa calma até fez menção de soprar a cortina da cozinha, mas ainda era muito pouco para apaziguar uma temperatura tão alta. Ela servia para anunciar a tarde que chegava aos poucos, com o sol já nem tão a pino assim. Só que nada – nem o tempo – seria capaz de colocar fim naquele instante.

Os dois faziam uma sesta silenciosa. Estavam quase adormecendo enquanto ouviam o barulho das ondas do mar quebrando na praia. Era a senha para o repouso da carne, para o merecido descanso após tanto furor. Mesmo assim, o corpo dela ainda insistia em repetir o frêmito por horas a fio.

“Bem-aventurado é quem se alimenta do seu corpo e se pode ver assim saciado para todo o sempre. Você era o exato motivo da minha fome. A sua falta era a razão desse vazio dentro de mim. Não sei o porquê de eu ter aceitado ficar tão longe de você. Mas agora que estou aqui, deixo para trás o resto do mundo”.

Ela só foi acordar no início da noite. Ele, por sua vez, havia passado o tempo todo velando o seu sono. Sentindo o odor suave de seus cabelos, que se espalhavam pelo tampo de mogno, com a mesa já descoberta. Ouvindo atencioso o ressonar dela como se ouvisse a sua própria respiração.

Até a hora em que ela resolveu dizer alguma coisa, pedindo-lhe – implorando
, quem sabe – para que ele não saísse para pescar no dia seguinte.

O que não tem remédio

Daniel Soleil Noir

O que não tem remédio, remediado está – esta era sua frase preferida quando vislumbrava apenas os estertores da própria vida. Repetia a sentença pelo menos quatro vezes ao dia enquanto ainda estava no hospital, de seis em seis horas, impaciente sobre o leito em que convalescia.

E mais por impaciência que por qualquer outra razão, resolveu deixar o hospital mesmo sabendo que estava prestes a morrer. Queria morrer em paz, no quarto de sempre, na sede da velha fazenda. Precisava pousar levemente as mãos sobre a floreira de azáleas, ainda sob a janela, e conferir de perto o viço das plantações que seguiam até a linha do horizonte.

Não tinha outros planos para depois que fenecesse, enfim. Até porque a solidão não permitia que ele os comunicasse a ninguém.

Chegou à casa sentado sobre uma cadeira de rodas, empurrada por um enfermeiro que viajara com ele. O sol do meio-dia ofuscava-lhe a vista, o que fazia com que perdesse alguns detalhes da paisagem. Porém, os odores permaneciam os mesmos desde a infância, nos tempos em que não passava de um moleque pronto para matar os pintos no galinheiro com a sola do sapato.

O enfermeiro chegou a ver, de repente, surgir um sorriso no canto dos lábios do ancião e julgou que alguém pudesse estar à espera de ambos. Mas nenhuma alma se apresentou junto à soleira enquanto os dois entravam. Seria apenas o velho naquela casa, pelo menos enquanto ainda resistisse – o que talvez não levasse mais do que alguns dias. E ao se acomodar em um dos sofás da sala, o velho secou o suor de sua pele ressecada e brincou com o enfermeiro:

- Veja só o quanto estou mais corado!

O jovem concordou com bom-humor, mas não pôde esconder uma boa dose de piedade quando seu próprio olhar baixou por um momento. Fingindo ignorar aquele ar, o velho se levantou com dificuldade rumo aos primeiros passos em sua casa. Olhou em volta e conferiu o estado dos móveis e da arrumação.

Nenhum dos empregados sabia a respeito de seu retorno. Por isso, acabou se surpreendendo ao encontrar todas as coisas em sua devida ordem. Não havia sequer a mínima película de poeira sobre as estantes, as prateleiras, sobre os braços dos sofás. Até o cheiro da cera para fazer brilhar o chão era perceptível ainda - aquele piso de madeira rústica, escura, talhada como parecia talhada a própria face do ancião, recortada por veios e rugas próprios da idade.

Rastejando os pés, calçados com um par de sandálias franciscanas, o velho pediu que fosse deixado a sós com a modorra da cozinha, onde todas as panelas estavam devidamente guardadas, assim também como todos os pratos, talheres e utensílios, nos armários que talvez fossem tão velhos quanto ele.

Surpreendeu-se, porém, com uma caneca de vinho deixada ao centro da mesa. Arregalou então os olhos azuis para enxergá-la melhor. E se deu conta totalmente do que realmente se tratava. Puxou os lábios enrugados, notando o quanto a boca estava ressecada e o quanto ela vinha se ressecando ao longo da doença.

Tomou a caneca entre as mãos trêmulas, mais por ansiedade do que pela própria fraqueza. E engoliu todo o seu conteúdo, como se aquele regalo tivesse sido deixado especialmente para ele. Foi assim que ganhou forças para subir as escadas e se dirigir aos seus aposentos, no segundo andar da casa.

Lá, empurrou as venezianas e enxergou pela última vez a paisagem com que sonhava quando ainda estava no hospital. E por um segundo se sentiu curado, o suficiente para que pudesse dizer adeus àquela sua vida.

Nada simples

Não foi simples, eu reconheço. Mas enfim consegui voltar a escrever. E mais uma vez chego à conclusão de que será difícil eu chegar a contar com a capacidade de escrever um romance. O negócio talvez seja mesmo investir nos contos. Já havia imaginado isso quando li Cortázar pela primeira vez. E Caio Fernando Abreu serviu para confirmar essa impressão algum tempo mais tarde. Sei que isso me frustra um pouco. Não posso deixar de admitir, porém, que o simples fato de voltar a escrever já me gera um alívio muito grande.

Os dois textos tiveram motivações diferentes. “O que não tem remédio” foi inspirado um pouco na morte do Raúl Cortez, mas não posso negar que alguns detalhes fizeram mesmo parte da minha biografia. Vale lembrar que ele foi escrito em um caderninho, no longo caminho até a casa da minha mãe. Eu o definiria como uma espécie de licença poética diante de um tema que, na minha opinião, não tem poesia alguma – para falar bem a verdade.

Já “La Siesta” me deu mais uma oportunidade de exercitar o texto dentro de um determinado campo semântico, sem que isso ficasse patético, ou mesmo piegas. Na realidade, ele é cheio de uma figura de linguagem que se apropria de palavras que não fariam parte do conjunto de termos da ação em si, mas que são usadas para descrevê-la sem que se mate as entrelinhas.

Dá para perceber também que não me empolgo em escrever a narrativa tradicional, com tempo e espaço bem definidos. Filosoficamente acredito que os dois se confundam e que criar uma separação entre ambos seria deveras superficial. E como a narrativa de um romance exigiria o deslocamento das personagens em um intervalo de tempo mais extenso, talvez resida justamente aí a minha já famigerada incapacidade para tal.

O conto não exige que o deslocamento das personagens no tempo seja tão definido. Sei que o romance (dependendo do artista) também não, mas ainda não cheguei a esse estágio...

Tuesday, August 29, 2006

vamos godard outra vez?

Confesso que não me empolguei com os últimos dois filmes do François Ozon. Cheguei até a cogitar ver 5x2 e O Tempo que Resta, mas logo desisti. Não custa especular um pouquinho para saber qual seria a razão disso. Afinal de contas, logo no primeiro filme que assisti do cineasta, já o coloquei entre os principais diretores europeus da atualidade, prestes a consolidar uma obra importante.

O que teria me desestimulado em relação a François Ozon?

O primeiro filme que eu vi do diretor foi Gota D’água Sobre Pedras Escaldantes, no longínquo ano de 2001. O roteiro foi baseado em uma peça de Fassbinder, que chegou a ser amigo de Ozon antes de sua morte prematura. E não posso negar que me senti diante de uma obra-prima, opinião que mantenho até hoje.

Entre os pontos fortes dessa adaptação, além do enredo em si, está o fato de a estrutura da peça ter sido transposta para as telas como se estivesse voltando a ser encenada no teatro. São apenas quatro personagens, que interagem dentro de um único ambiente, sem cenas externas ou qualquer maneirismo. Os personagens, semelhantes a outros dentro da obra de Fassbinder, ocupam na película o limiar entre a alegoria e suas respectivas personalidades.

Logo depois que Gota D’água Sobre Pedras Escaldantes saiu de cartaz em São Paulo, François Ozon se transformou em um verdadeiro hit do cinema europeu na capital paulista. Basta lembrar de Sob a Areia, exibido no começo de 2002. Aqui, a introspecção é a palavra chave do roteiro, capaz até de minimizar a importância dos personagens que orbitam em torno da protagonista.

Depois, veio 8 Mulheres, um musical com Catherine Deneuve e outras entre as principais atrizes francesas, como Isabelle Huppert, Fanny Ardant e até a promissora Ludivine Sagnier, que já havia aparecido em Gota D’água Sobre Pedras Escaldantes e que seria a protagonista de Swimming Pool, que vi em 2003 - quando François Ozon já parecia ser mais um objeto de culto.

Quatro filmes depois, já não consigo mais enxergar a possibilidade de uma obra, na acepção da palavra. Vejo, na verdade, uma filmografia irregular, de quem aos poucos foi perdendo tanto a poesia quanto a ousadia vista em Gota D’água Sobre Pedras Escaldantes. Mesmo a temática, que poderia ser um fio condutor entre os filmes de François Ozon, não parece conferir uma unidade aos trabalhos do cineasta – seja falando de uma temática subliminar ou não.

Ao contrário da minha sensação anterior, Ozon já não me aparece como o mais representativo diretor do cinema francês nos dias de hoje. Mesmo os Sonhadores, do italiano Bernardo Bertolucci, fica à frente de outros filmes que compõem o currículo do colega François Ozon – embora sempre seja extremamente leviano tecer comparações desse gênero.

Mesmo assim, continuo considerando Gota D’água Sobre Pedras Escaldantes uma obra-prima. O filme conta a história de um cinqüentão que mantém um caso com um rapaz mais jovem. Quando ele viaja, o garoto continua morando em seu apartamento, onde recebe a visita de uma suposta ex-namorada (Ludivine Sagnier). No momento em que o cinqüentão volta, o conflito passa a se desenrolar com as três personagens, até a chegada de um transexual, antigo caso do dono do apartamento onde transcorre a ação do filme.

Ozon usa a luz incipiente e determinados enquadramentos para dizer além das palavras que compõem as falas das personagens. É esse clima, que também recebe uma contribuição do próprio cenário, que acentua o que há de excepcional no roteiro baseado na peça de Fassbinder. É isso também, pelo menos na minha opinião, que transforma os outros filmes de Ozon em longas superficiais, afogados pelo freqüente maneirismo do cinema europeu atual.

Tomemos como exemplo O Tempo que Resta, que está atualmente em cartaz em São Paulo. Mais uma vez preciso ressaltar que não cheguei a vê-lo. Mas li a sinopse: jovem fotógrafo com câncer vive os últimos momentos de sua vida antes de morrer por conta da doença. Tudo bem: Ozon trata o assunto a seu modo. Basta ver que o fotógrafo é homossexual e contracena com Jeanne Moreau, uma das principais atrizes francesas nos tempos da Nouvelle Vague.

Mas devo admitir também que, na verdade, fiquei com uma sensação de déjà vu depois de ler a sinopse. Embora aborde outro tema, a eutanásia, não pude deixar de lembrar de Mar a Dentro, Oscar de Melhor Filme estrangeiro em 2005, se não me engano. E juro que prefiro manter na memória a grande atuação do espanhol Javier Bardem do que ficar babando ovo para gente fingindo que faz cinema com profundidade, para depois ficar cagando regra por aí.

O comentário acima pode até ter sido preconceituoso, eu reconheço, mas o que interessa é que eu penso dessa forma e talvez nunca assista aos últimos dois filmes de François Ozon: 5x2 e O Tempo que Resta – embora o cartaz de 5x2 tenha sido papel de parede do meu celular até pouco tempo atrás.


Não agüento mais ver Páginas da Vida. E quem me conhece sabe disso. Tenho a nítida sensação de que Manoel Carlos está plagiando a si próprio. Os conflitos são praticamente os mesmos de folhetins anteriores. E a Bossa Nova usada para o consumo diário me irrita profundamente. É como se transformassem a poesia de Tom e Vinicius em artigo de segunda linha. Não dá!

Além do mais, os conflitos de Páginas da Vida me parecem mais previsíveis do que os de novelas anteriores do próprio Manoel Carlos. O autor ainda insiste em querer trazer suas teses para as entrelinhas, investindo em uma análise psicológica do binômio feminino/masculino que não passa de lugar-comum.

Existem ainda papéis que eu detesto profundamente. Como o patriarca representado por Tarcísio Meira, que insiste em querer manter a família toda em torno da sua órbita. Será que ninguém ali naquela família acredita que seria mais bacana viver longe da barra da saia do pai ou do avô? Isso sem contar a Viviane Pasmanter, cuja personagem chega a ser patética na minha opinião.

Tudo isso para dizer que a pior coisa que pode ocorrer a um artista é entrar na roda-viva de se repetir o tempo todo. Talvez signifique a morte. Esse é um dos motivos para que, guardadas as devidas proporções, eu nunca mais tenha escrito nada – nem o romance que eu estava programando, nem os contos que eu vinha produzindo. A falta de tempo também contribuiu, mas quando ele existiu, faltou coragem suficiente para enfrentar a página vazia.

Vejamos o exemplo do Chico Buarque. Embora eu ainda seja seu fã, preciso admitir que suas atuais composições soam como mera masturbação se compararmos com o que foi sua produção até os anos oitenta. Sua poesia perdeu aquela atualidade e o que tinha de mais coloquial. As canções passaram a contar com um lirismo pra lá de artificial, como se o tesão de outros tempos tivesse ido embora para nunca mais voltar.

Ninguém quer que Chico Buarque reescreva marcos da Música Popular Brasileira como A Banda, O que Será?, Eu te Amo, entre outros. Fazer isso seria seguir a linha de copiar a si próprio, que eu tanto condeno. Só lamento, porém, que Chico tenha perdido a mão da poesia e se entregado a uma métrica de criança quando escreve poema no colégio para mostrar para a professora.

O leitor não sabe o quanto isso me irrita. Principalmente quando eu mesmo percebo que perdi um pouco a mão da escrita, seja por um motivo ou por outro. Se o homem tem pelo menos três objetivos na vida, ainda preciso ter um filho e escrever um livro. Quanto à árvore, lembro que plantei uma ainda na terceira série, quando estudava no famigerado colégio Salesiano.

E outra: quem disse que Manoel Carlos chega a ser um artista, pelo menos na acepção da palavra para o que defino como tal?

Por falar em Salesiano, achei engraçado saber que o José Wilker também passou por um colégio desses. Talvez isso justifique ainda mais o fato de o cara ser uma das maiores figuraças de todos os tempos...

Ontem, o Wilker estava ao lado do Marco Ricca no programa do Jô Soares. O mesmo Marco Ricca que passou quase desapercebido na platéia do primeiro debate presidencial da Bandeirantes em 2006. Digo quase, pois pude notá-lo sentando a uma cadeira na lateral esquerda do auditório. E cabe uma pergunta: não é sintomático que, na ausência de Lula, Ricardo III tenha aparecido na ocasião? Seria o fantasma de Shakespeare dando as caras nas eleições?

Detalhe: Ricardo III vai passando por deformações ao longo da peça. E a falta de um dos dedos da mão está longe de ser a única deformidade de Lula. Basta lembrar dos escândalos que estouraram no ano passado, entre eles o do mensalão. O fato é que a imagem do Lula que começou o governo está bem longe da imagem do mesmo Lula que vemos agora, embora ele lidere com folga as últimas pesquisas divulgadas nos meios de comunicação.

O engraçado é que esse Ricardo III é careca, ao contrário do Ricardo III do Celso Frateschi, mas a exemplo de Hamlet, outro personagem da obra de Shakespeare. Pode parecer alguma espécie de loucura minha dizer isso, mas seria lugar-comum querer parafrasear a fala em que o protagonista diz que “há algo de podre no Reino da Dinamarca”? Essa é pra pensar...

Monday, August 28, 2006

desgraça pouca é bobagem

As pesquisas eleitorais indicando uma provável vitória de Lula já no primeiro turno fazem com que eu me pergunte como seria um possível segundo mandato do presidente a partir de 2007. Afinal de contas, o governo acabou sendo desarticulado com os escândalos do ano passado e as coisas só começaram a voltar aos eixos com a proximidade do pleito e a liderança nas pesquisas.

Depois das inúmeras denúncias de corrupção, fica cada vez mais claro que uma reeleição com uma votação maciça, já no primeiro turno, teria a função de reiterar a legitimidade de Lula no poder, ajudando o presidente a recompor a sua governabilidade para os próximos quatro anos - apesar de todos os pesares.

Além disso, o governo passaria a contar com uma base aliada mais legítima do que aquela com a qual contou no primeiro mandato, evidentemente cooptada por intermédio da compra de partidos e parlamentares envolvidos no escândalo do mensalão. Isso, claro, pelo menos em tese, já que não se sabe como o PT vem administrando essa questão nos bastidores.

As saídas de José Dirceu e Antônio Palocci do governo fizeram com que Dilma Rousseff e Guido Mantega assumissem os ministérios da Casa Civil e da Fazenda, respectivamente, mas em ambos os casos ficou claro que o governo foi obrigado “a trocar o pneu com o carro andando”. É muito provável que os dois permaneçam em suas pastas, mas ainda é preciso saber quais seriam as possíveis caras novas em caso de uma reforma ministerial. Além de saber o mais importante: qual será a cara de um futuro segundo governo Lula.

Aliás, antes de qualquer coisa, seria bom que Lula percebesse o momento atual e que um segundo mandato aconteceria em condições diferentes daquelas em que governou até aqui. Seria importante também que colocasse em prática um entendimento com a oposição, intenção que demonstrou ter na última sexta-feira. Só assim seria possível fazer as reformas que não fez no primeiro mandato, sem a necessidade de uma Assembléia Constituinte.

O problema é que tudo isso ainda é teoria. Mas tendo em vista a baixa temperatura do processo eleitoral até aqui, tudo indica que este seria o caminho - ou pelo menos o caminho mais racional. O que não pode acontecer é a manutenção da inoperância e da falta de governabilidade em pleno início de um novo período de quatro anos. Nessas condições, só o Brasil sairia perdendo, refém do próprio resultado da vontade expressa nas urnas.

Uma possível reeleição de Lula, porém, não pode ser encarada como uma absolvição do povo em relação aos últimos escândalos. Nem vista, por outro lado, como se o povo apenas estivesse endossando os últimos avanços sociais e a condução da estabilidade econômica. O assunto merece, na verdade, um estudo mais cuidadoso, que analise de maneira sociológica as razões para que o eleitor tenha optado pela manutenção de um governo acusado de corrupção, que manchou aquela que era uma das principais bandeiras do PT: a Ética.

Um estudo que, quem sabe, respondesse qual a posição do brasileiro frente à reeleição em si, frente à realização de eleições presidenciais de quatro em quatro anos, e até mesmo em relação à duração do mandato presidencial.

SOBRE TUCANOS, LOBOS E BOLCHEVIQUES

Parafraseando Regina Duarte há quatro anos (só que do outro lado da trincheira), eu tenho medo do futuro do PSDB. A falta de consenso em torno de uma estratégia para ajudar na eleição de Alckmin à Presidência pode estar revelando mais sobre o partido do que esperavam suas principais lideranças.

Caso Lula confirme as pesquisas eleitorais e seja eleito em primeiro turno, José Serra e Aécio Neves já aparecem como os dois nomes mais fortes do tucanato para a disputa marcada para 2010. Mesmo derrotado, Alckmin também sairia ganhando, pelo menos a médio prazo, ficando mais conhecido em âmbito nacional e aumentando seu capital político para futuras eleições.

Só que antes de todas essas hipóteses, existe uma eleição a ser disputada. E abrir mão de uma vitória, mesmo que isso ainda não signifique a renúncia, é um prejuízo para a democracia. A temperatura baixa da atual corrida eleitoral não significa uma campanha disputada em alto nível, sem baixaria, mas reflete a inércia do processo político brasileiro. E o PSDB contribui para esse mal.

Antes da eleição de FHC, o PSDB parecia querer trazer algo novo ao cenário político, mas tinha entre os alicerces do partido nomes como Franco Montoro e Mário Covas. Basta, por exemplo, ter lido Notícias do Planalto, de Mário Sérgio Conti, para lembrar que foi o mesmo Covas que convenceu Fernando Henrique a não entrar para o governo Collor após a queda da República de Alagoas.

O próprio FHC poderia ter se consolidado como uma dessas lideranças, mas a cada dia parece se abster ainda mais do processo político. Com isso, vemos o principal partido de oposição ao governo agir como uma confraria de pelegos, pronto para sair da briga em prol de um “objetivo maior” e provavelmente mais certo em 2010. O problema é que, além da eleição, os tucanos darão a Lula mais quatro anos à frente da máquina, que poderá muito bem ser usada segundo critérios de uma estratégia stalinista de perpetuação no poder.

Mesmo com o pleito cada vez mais iminente, não se pode desistir da possibilidade de uma mudança no quadro. É preciso falar da corrupção do governo Lula, da falta de governabilidade após o estouro dos escândalos do mensalão e das sanguessugas. Se Alckmin acha a estratégia arriscada, por que então o PSDB não escolhe uma de suas principais figuras, conhecida nacionalmente, para o papel de metralhadora giratória? Alguém que também sirva de escudo contra o possível contra-ataque dos adversários?

Não é novidade que falta polarização à campanha. E que esse tem sido um dos motivos principais para que Lula esteja tão à frente nas pesquisas.

A oposição pode ter acertado em 2005 quando preferiu poupar o presidente Lula das denúncias de corrupção, de forma a não criar uma crise política que ameaçasse o cumprimento de seu mandato. Não se pode alijar um presidente da República de seu cargo sem que essa possibilidade parta da população. O estranho apenas é perceber a manutenção dessa estratégia, a ponto de termos uma campanha presidencial praticamente abaixo de zero, quase como se Lula tivesse um mandato de oito anos em Brasília.

IRONIA, AINDA QUE TARDIA

Parecia esquizofrênica dentro da Ferrari a torcida por Felipe Massa na disputa do GP da Turquia. Ele havia largado na pole position, manteve a primeira posição e estava fazendo uma bela corrida. Mas bastava uma ultrapassagem de Schumacher sobre Alonso para que a escuderia vermelha manchasse mais uma vez a imagem da Fórmula 1 com uma nova inversão de posições.

O momento que mais ilustra essa sensação veio quando Schumacher colocou de lado e parecia enfim passar Alonso, o que não se confirmou graças a mais uma manobra defensiva por parte do espanhol (que já vem se especializando em segurar o heptacampeão). Na cara do pai do brasileiro, em pleno box da equipe vermelha, dava para ver o alívio com a permanência de Schumacher atrás.

Enquanto isso... bem, enquanto isso ficava cada vez mais claro que Massa vinha seguindo o script da Ferrari para a chance de abrir passagem para o alemão. Logo após a última parada de Schumacher, a diferença do brasileiro em relação a Alonso chegou a 12 segundos. Massa, porém, recebeu a bandeirada quadriculada só 5s5 à frente do representante das Astúrias, 15 voltas depois.

Além disso, como se não bastassem as evidências do cronômetro, o som na transmissão da Globo não deixava a menor sombra de dúvida a respeito da diferença no número de giros do motor de Massa em relação ao número de giros do propulsor de Schumacher, louco para ganhar a prova.

Mas aí poderia chegar o advogado do diabo e dizer que o procedimento em relação a Massa teria sido absolutamente normal. Sem ser diretamente ameaçado por Alonso, o que adiantava forçar o ritmo com a corrida praticamente ganha? Traga o carro para a casa, poderia ter dito Ross Brawn, repetindo uma frase que já chegou a marcar dobradinhas fáceis da Ferrari.

O problema é que só alguém muito ingênuo duvidaria que, uma vez tendo ultrapassado Alonso, Schumacher ganharia a liderança de bandeja para diminuir de dez para seis pontos sua desvantagem em relação ao espanhol, a quatro etapas do final da temporada do Mundial de Fórmula 1 em 2006.

Em 2002, quando o papel de coadjuvante na equipe ainda cabia a Rubens Barrichello, Schumacher tinha caminho mais do que pavimentado rumo ao pentacampeonato antecipado. E o que o mundo viu foi a inversão de posições justamente sobre a linha de chegada do GP da Áustria, em Zeltweg.

O próprio Massa deixou bem claro que abriria sem problemas para Schumacher, de forma a ajudá-lo na briga contra Alonso pelo título em 2006. Até disse à equipe, via rádio, que sentia muito pelo resultado de Schumacher.

Em Istambul, o terceiro lugar ficou de ótimo tamanho para o alemão. Afinal, quem pilotou suficientemente bem para ganhar a corrida foi Massa. Já Alonso mais uma vez mostrou a maturidade que muitos veteranos não têm na hora de defender sua posição. E Schumacher abusou da sorte ao escapar na difícil Curva 8, perdendo tempo precioso em um passeio pela grama.

Outro detalhe engraçado é que a própria Ferrari acabou pecando feio na Turquia. Quando o Safety Car entrou na pista, chamou seus dois pilotos ao mesmo tempo para o pit stop. A estratégia costuma ser usada para privilegiar Schumacher, sempre o primeiro a ser atendido. Mas desta vez era Massa que estava na frente. E foi exatamente nesse momento que o alemão perdeu o segundo lugar para Alonso, além de ver adiada a chance de uma inversão.


O irônico nisso tudo é que justamente agora, que o jogo de equipe poderia ser fundamental para a conquista do octa de Schumacher, quis o destino que não houvesse possibilidade de que ele acontecesse em Istambul. E a vantagem de Alonso subiu de dez para 12 pontos na tabela de classificação.