ironia, ainda que tardia

Monday, February 28, 2005

Soldado Ilia

Daniel Soleil Noir

Ilia não é o soldado que morreu na guerra. Ele não morreu ainda. Apesar do tiro no peito. Apesar desse conflito irracional. Está vivo apenas por conta de um detalhe na iminência de desaparecer para sempre. Ilia é o soldado ferido. À beira da morte. Ele sabe disso. Não intui; sabe. Chora, pois a dor que sente é insuportável. Teme, porque ouve zumbidos de balas cruzando o ar impregnado de pólvora e ódio. O coração já não bate com o mesmo vigor de vinte minutos atrás. Pulsa acabrunhado dentro de um corpo violado. Ilia está caído à margem de um riacho que ele mesmo ajuda a tingir de sangue. As pernas estão jogadas na pouca água que cisma em correr naquele leito estreito. O verde-oliva da farda o iguala aos outros combatentes. O sentimento que toma conta de sua alma é o que o difere de todos eles, não importa se são aliados ou inimigos. Estou morrendo, diria Ilia se conseguisse falar. No entanto, balbucia um código comum aos desesperados. A barba cresceu nesses intermináveis meses de batalha. Densos pêlos que escondem o medo imperdoável, que ele mesmo procurou evitar por semanas. O sono, tantas vezes perdido, entrincheirou-se nas olheiras que se apossaram de seu rosto. Há quem acredite que ele já esteja morto. Há quem tire o rifle de suas mãos e assuma o controle das munições que envolvem seu pescoço lanhado e suado. Ilia não morreu. Mas está resignado, o que quase é a mesma coisa. As lágrimas, ainda que discretas, representam um esforço a mais. O choro, mesmo que discreto, é quase capaz de cegá-lo. Enxerga somente uma ensolarada manhã de outono, turva, aquosa e colorida. Julga permanecer no campo. Talvez esteja realmente na ante-sala do Éden. Um jardim. De onde nunca deveria ter saído. Não é, mamãe? Será que isso não é um delírio? Não é efeito da febre que se aproveita da vulnerabilidade de Ilia? Responda logo, pois calar é omitir. Ele não pode ouvi-la. Ouve o grito dos colegas fardados. Escuta os tiros, as explosões, as granadas. Ouve a própria agonia.

Ilia não morrerá solteiro. Casou-se sete meses antes de se juntar à tropa. Caterina é o nome de sua viúva. Mulher que ama, embora reste a ele um mísero filete de vida. Menina que o espera na casa que compraram juntos, da qual iam pagando as prestações mês a mês. Nos primeiros dias da guerra, o que fazia mais falta era a carne lasciva da esposa e companheira. Os seios fartos que seu tórax amassava. As coxas macias por onde seus dedos corriam até os pêlos pubianos. A boca aberta, escancarada, por onde achava a língua dela. O ofegante idioma do pecado. Ilia tinha de se contentar com a lembrança, a mesma que chega para assaltá-lo enquanto agoniza. Tinha de se contentar com as poluções ocultadas pelas madrugadas, com a imaginação estimulada pela vigília. Com o orvalho que imitava o perfume de Caterina. Mulher nenhuma na face da Terra repetia aquele odor. Cheiro da mulher de Ilia. Depois, passou a sentir falta da simples companhia da esposa. Das palavras dela. Do amor que ela pronunciava com tanto gosto. Desejava acordar ao lado dela novamente. Pedir que lhe atasse o nó da gravata. Oferecer-se para lavar a louça do jantar ou arrumar a mesa para o café da manhã do dia seguinte. Almejava lutar por um novo beijo. Matava os inimigos sem dó para receber o quanto antes a recompensa daquele gesto. Se dizimar exércitos adversários fosse garantia de um pronto retorno... Na verdade, nenhuma gota do sangue alheio seria capaz de renovar as promessas de seu casamento. Sobravam só a culpa e a saudade. Ao norte, um novo abrigo. Réstia de segurança que lhe permitia uma outra olhada na fotografia de Caterina, guardada cuidadosamente num dos bolsos da farda. Pena que não pode se emaranhar naqueles cabelos cacheados, naqueles fios rubros que inflamam seus desejos. Amada Caterina, estou bem, mas sinto muito a sua falta; escreveria numa carta se por acaso não tivesse tomado o tiro.

Ilia morria pela pátria, embora quisesse viver para Caterina. Talvez o pai se orgulhasse de tamanha danação. Afinal, foi ele quem lhe ensinou a honrar o país em que nasceram. As cores, a bandeira, o chão, a fauna, a flora. Ilia, não esnobe tais recordações. Não desperdice seu fôlego somente com a consciência da própria morte, sob o risco de antecipar o próprio fim. Lembre-se do pai. Essa figura agreste. Do pai com quem, quando criança, aprendeu a jogar futebol. Ao lado de quem torceu nas primeiras Copas de sua vida. Ele então traz o pai à tona da mente conturbada. Chuta a bola pelo gramado do sítio. Ganha uma nova bicicleta no Natal. Suja-se de lama à beira do açude. Mas a lama de agora, em sua cara, vem do coturno de outro soldado, que pisa uma poça atrás de sua cabeça. Pai, me dê um banho. Se conseguisse pedir... Se pudessem ouvi-lo... Não se envergonha da condição em que se encontra. As lições paternas de coragem são belas utopias. Não valem na prática. E o maior legado, a vida, vai se esvaindo pela fraca correnteza do riacho. Perde-se como se fosse nada, fosse desimportante, inútil e até mesmo insólita. Ilia não quer que o pai saiba de sua morte. Prefere que o genitor passe incólume pelos sofrimentos da guerra. Mas também não quer o velho chorando sobre o túmulo do soldado desconhecido. E o velho chora? Nunca viu. O máximo que pôde observar certa vez foram as vistas avermelhadas por ocasião do falecimento do avô. Quanto tempo, hein! Nunca mais. Filho, nunca deixe de honrar o exército de seu país. A nação precisa de você. A família precisa do nosso nome no front. Ilia pensa na despedida durante o embarque da tropa.

Ilia não pára de morrer. Infelizmente. Nada é capaz de curá-lo. Coitado. Nem a Cruz Vermelha, a quilômetros dali. Nem Deus, se ele realmente existir. Sim, Ilia acreditava no Altíssimo. Ao acordar naquele fatídico dia, por exemplo, fizera suas orações. Um Pai Nosso. Uma Ave Maria. Mas longe de casa, comungava só dos horrores e da coragem dessa guerra. Benzia-se a cada inimigo tombado por intermédio de um tiro seu. Pedia para que a alma recém-sacrificada gozasse no conforto do perdão divino. Em breve, Ilia também será o soldado morto. Conseqüentemente, já se indaga sobre o destino da própria alma. Começa a questionar a existência de qualquer divindade. Blasfema contra esse Deus que, se houver, não é tão bom ou misericordioso como se propala por aí. Fenece. Jaz. Falece. Morre. Onde está a revoada de anjos que vem buscá-lo para o descanso da vida eterna? Surgirá? Estica os olhos examinando o céu. Norte. Leste. Sul. Oeste. Desviariam, querubins e serafins, dos caças que rasgam o firmamento sem piedade? Aliás, Piedade é o nome de sua mãe. Menino, aprendeu com ela a beijar o escapulário amarrado ao pescoço. Esse que acaba de buscar com a boca espumada por uma saliva convulsa e tresloucada. Mamãe, por sinal, está rezando a esta hora. Pela saúde e pelo retorno de Ilia. Imagina o filho entrando pela porta do sobrado, feito guerreiro vitorioso pronto para se fartar com o carneiro preparado para o almoço. Mas logo sentirá de novo a ausência do unigênito. Logo vai lavar a louça após a refeição solitária. E colocará um velho disco de Charles Aznavour na vitrola. Mal desconfia da possibilidade de Ilia não voltar mais. Procura se desviar dos maus pensamentos. No início da noite, a dona planejaria levar algum dinheiro para Caterina comprar verduras no armazém. Incomoda-lhe ver a nora emagrecendo progressivamente. Que tal preparar para ela uma torta de carne moída e uma salada bem temperada? Mãe, por favor, cuide de Caterina enquanto eu estiver fora. Faça isso por mim.

Mas qual o motivo de Ilia continuar vivo? Basta morrer e tudo estará terminado. Não precisa sequer fechar os olhos; outro soldado será encarregado de baixar suas pálpebras respeitosamente. Morrer não é tão difícil assim. Com uma bala alojada no peito, torna-se inevitável. Todavia, observando o semblante de Ilia com atenção, parece que seu sofrimento está indo embora. Abandona um corpo prestes a ficar sem alma, pois é da alma que o sofrimento se alimenta. Nasce na face uma espécie de gozo, o gozo da memória. Caterina. Pai. Mãe. E é por isso que Ilia não é o soldado que morreu na guerra. Ele não morreu ainda.

Monday, February 14, 2005

Cigarro aceso

Daniel Soleil Noir

Alguém havia jogado, numa noite de sexta-feira, meio cigarro aceso sobre a dupla faixa amarela que divide a rua Augusta. Mesmo da calçada, dava para notar que ele tinha o filtro branco, imaculado, sem vestígios de batom ou algo do gênero. Era impossível, porém, identificar a marca, escrita em letras pequenas, talvez em itálico. Mas o mais evidente era justamente o fato de permanecer aceso, fumegando como antes de ser jogado, fazendo parecer que era do asfalto que brotava aquela fina fumaça branca – que, por sinal, não alcançava os trinta centímetros de altura. Durante um certo tempo, detive minha atenção no tal cigarro, esperando que algum ônibus ou algum carro, subindo ou descendo a rua, viesse a apagá-lo. Esqueci, por instantes, o copo de cerveja à minha frente. Os veículos, entretanto, passavam perto e quase por milagre não atingiam o frágil objeto que aos poucos se consumia. E foi queimando lentamente até que não sobrasse nada mais que cinzas.

Indaguei-me quem, por acaso, jogaria fora meio cigarro aceso; quem seria o autor ou a autora desse ato de tamanha displicência. Comecei então a procurar indícios e suspeitos nas outras pessoas ao redor, que também bebiam no mesmo bar em que eu me encontrava, nas mesas dispostas sobre a calçada. O velho, que pedira meia xícara de café com leite, não tinha cara de fumante, embora segurasse a caneta esferográfica com que preenchia as cruzadas no jornal como se fosse um cigarro. O casal da mesa seguinte, a moça loira e o rapaz negro, fumava, mas seus cigarros tinham o filtro pardo, diferente daquele que havia sido atirado no meio da rua. Outros dois homens, mais à frente, jogavam xadrez e discutiam política e era provável que, se fumassem alguma coisa, não deveriam fazê-lo em público. Continuei observando até a hora em que me surpreendi ao me deparar com o gerente do departamento, o mesmo que decidira por minha demissão ainda pela manhã.

Ele estava acompanhado de uma loira e de um outro homem, que também ria. Cheguei a pensar em pedir a conta e mudar de bar, mas desisti da idéia ao ter a certeza de que o trio não me veria, mesmo que eu os observasse com nitidez. Eu não conseguia ouvir o que eles diziam, nem imaginava o que conversavam. Apenas assistia aos três, como se estivesse num teatro, diante de uma peça sem falas. Eu me concentrava principalmente nos gestos. E logo passei a tomá-los como os principais suspeitos de terem jogado o tal cigarro aceso.

A mulher fumava com o cotovelo apoiado sobre a mesa de plástico, o antebraço em linha vertical e a brasa apontada para o alto, assentindo, com um sorriso amarelo na seqüência, as afirmações dos homens que a acompanhavam. O gerente do departamento, por sua vez, tirava muito pouco o cigarro da boca e o fazia somente para bater a cinza na borda do cinzeiro. Mesmo assim, apenas quando ela já estava a ponto de cair por si só. Já o outro homem tinha o hábito de manter seu cigarro entre os dedos da mão direita, colocando-o como parte integrante de sua gesticulação e utilizando-o para pontuar suas argumentações mais enfáticas. E enquanto eu os olhava, esperava, na verdade, que um dos três pudesse repetir a cena anterior, ainda que eu não soubesse se havia sido um deles o protagonista. Uma espera que poderia se tornar, a cada minuto, cada vez mais inútil.

Apesar de concentrado, eu continuava a beber minha cerveja, a mais cara que o bar servia. Não admitia me obrigar a dar importância ao preço e ao fato de que, a cada garrafa que eu pedia, era um dinheiro a menos na minha conta bancária e uma garantia ainda menor de que eu teria como sobreviver caso não arranjasse outro emprego em breve. Aliás, desejava que, se fosse para que meu dinheiro acabasse com alguma coisa, que fosse com bebidas, no balcão ou em uma das mesas daquele bar na esquina da Augusta com a Luís Coelho, sentido centro. Além do mais, passavam ali duas linhas de ônibus que não paravam exatamente na porta de casa, mas que me deixavam a algumas quadras de lá. Como se não bastasse essa vantagem, banal a uma primeira vista, eu me sentia acompanhado de certa forma, mesmo que preferisse beber por ali sem companhia conhecida e me sentisse, por outro lado, acompanhado por todos à minha volta. Não no sentido piegas que isso talvez viesse a ter, mas no sentido de que todos nós talvez estivéssemos no mesmo barco, um sem notar o outro naquele bar lotado.

Era possível, no entanto, que o gerente do departamento estivesse em um barco diferente do meu e que seria ingênuo de minha parte acreditar no contrário. Confesso, contudo, que cheguei a crer nessa bobagem nos tempos em que contava com uma certa estabilidade no emprego, um futuro pela frente e incontáveis perspectivas de promoções a cargos que escalavam o organograma da empresa quase que infinitamente. Mas todos usufruímos o direito de ser otários algumas vezes na vida e reconheço ter abusado um bocado dessa prerrogativa. Não que isso pudesse ser explicado como um desencanto com o mundo, pois em situações nas quais eu me aproximava disso, reduzia meu mundo ao bar em que me encontrava e tentava retomar minha relação com o resto de tudo a partir dali.

Voltando ao assunto que originou o presente relato, o gerente do departamento terminou um dos cigarros que acendera e espremeu a bituca contra o fundo do cinzeiro de aço inoxidável. Isso quase fez com que eu o tirasse automaticamente do rol dos principais suspeitos. E em meio a dúvida se lhe dava ou não a absolvição completa, alguns questionamentos retornaram ou vieram-me à mente. Afinal de contas, quem jogaria meio cigarro aceso no meio da rua? Por que teria desistido de fumá-lo até o fim? Precisaria mesmo haver um motivo? Alguém poderia ter vetado sua entrada em um carro, fosse em um táxi ou em uma carona. Alguém poderia ter evitado sua entrada em um prédio, no hall ou na portaria. A repentina chegada do ônibus talvez tivesse precipitado o iminente passageiro a tamanho desperdício. Mas por que não apagá-lo discretamente em uma parede qualquer, a parede mais próxima, e guardá-lo junto aos outros cigarros novos? Digo isso, mas não fumo, nem sei quanto custa um maço. Sei que se trata de um artigo caro para as minhas posses, em relação aos meus gastos diários. E essa já é uma ótima razão para que eu não seja um fumante. Lembro de uma amiga minha que costumava guardar o cigarro interrompido para fumá-lo de novo em momento mais oportuno. Isso, realmente, me era mais aceitável, um modelo de atitude a ser seguido.

Mais para o fim da noite, o garçom levou a conta para a mesa com o gerente do departamento, com o homem e com a loira. E quando os três, enfim, foram embora, vi-me ainda mais sem respostas. Desde o instante em que comecei a observá-los, nenhum deles sequer fez menção de atirar um cigarro que já não tivesse sido completamente fumado. Não que, por conta disso, o trio deixasse a condição de suspeito; somente a compartilhava em pé de igualdade com todos os que passaram pela Augusta momentos antes que eu flagrasse o cigarro deitado sobre o asfalto, junto à dupla faixa amarela.

Também pedi a conta. Tirei da carteira três notas gordas e deixei-as sobre o balcão, debaixo do paliteiro. Ao sair do bar, resolvi atravessar a rua, mesmo que isso não fosse necessário para tomar o caminho de casa. Tirei o primeiro pé do meio-fio assim que um carro branco passou por mim. Só que decidi parar no meio da Augusta, sem razão plausível. Mas não fui colhido por nenhum veículo que utilizasse a via àquela hora da madrugada. Dois minutos depois, retomei a travessia e continuei a viver minha própria vida.

* - Apesar de alguns aspectos do conto acima fazerem parte do cotidiano do autor, o texto não é necessariamente autobiográfico.

Saturday, February 05, 2005

Celeste

Daniel Soleil Noir

Ambos giravam na festa em torno da órbita um do outro. Ele, de longe, seguia os passos dela, como que conduzido por um campo magnético ainda desconhecido. Ela, por sua vez, desviava dos outros convidados, com passos atrapalhados e uma taça de champanhe em uma das mãos. Eles não se olhavam, a princípio, mas o tal campo magnético já estava estabelecido. O comportamento dos dois se assemelhava bastante ao que a astronomia descreve como o de estrelas gêmeas. Mas o que havia de físico entre eles talvez fosse mais bem explicado pela Biologia, na verdade.

Houve um momento em que os olhares se cruzaram, apesar do ambiente mal iluminado, num fenômeno que só ocorre em intervalos de bilhões e bilhões de anos. Porém, eles fingiram não ter visto um ao outro. Ele voltou à calma e à previsibilidade de seu sistema solar, enquanto ela fazia o mesmo, com as poucas amigas à sua volta. Já o restante do cosmos permanecia em sua trajetória de caos, a caminho do imprevisível, embora na Terra ainda se procure um sentido pra vida e pra tudo o que acontece nesse mundo de Deus.

Ainda que não olhassem mais um para o outro, continuaram a se aproximar cada vez mais, em rotações e translações que, mesmo que aleatórias, possuíam um objetivo único e nobre. Em breve, já estariam lado a lado, lançando olhares furtivos e dissimulados, como se o fingimento e a timidez pudessem ser ainda maiores. Ele se concentrava no rosto dela, evitando propriamente os olhos para que não fosse pego em flagrante na sua contemplação. Ela, ao contrário, era mais audaz, justamente porque tentava flagra-lo, ainda que ele tentasse desviar o olhar para um ponto perdido no meio do nada, confundido em meio a outros pontos difusos de luzes coloridas nas proximidades da pista de dança.

No entanto, quando enfim se distraíram, não puderam evitar a aproximação definitiva. De costas um para o outro, acabaram se esbarrando num choque suave, sem a mínima menção de dor. Colocaram-se então cara a cara e perceberam-se mais próximos do que jamais haviam estado antes. Os olhos de Daniel viam agora de mais perto o delicado rosto de Mariana a uma distância mínima da sua própria face. E Mariana, concentrada, quase podia sentir a aspereza da “sua barba por fazer” machucar-lhe a pele alva e avermelhada das maçãs. E bastou ela notar que ele tinha a boca larga, e talvez macia, para abdicar da visão e recorrer ao sabor daqueles lábios. O beijo, todavia, o surpreendeu. Já se preparava para abortar a viagem segundos antes da trajetória repentina descrita pelo ósculo iminente.

E as mãos dele buscaram os cabelos dela, ainda presos num rabo de cavalo. E a boca dela quase engoliu a língua dele, tomando todo o seu fôlego e oxigênio.


Exatamente às três e dezessete da manhã, o fenômeno encaminhou-se para um momento que mesmo para a ciência atual ainda é impossível explicar conclusivamente. Já não se beijavam mais. Apenas um abraço unia os dois. Atados pelos dedos entrecruzados e de frente um para o outro. Ouviu-se a partir daí as primeiras palavras. E o que as mais potentes lentes do universo puderam enxergar foi a viagem de Mariana e Daniel para uma galáxia mais tranqüila, longe dali.