ironia, ainda que tardia

Friday, October 27, 2006

Lupanar modesto

Daniel Soleil Noir

Acordou com o sol invadindo o quarto através da janela escancarada. Havia uma fina baba escorrendo-lhe da boca, pendendo até a tosca mochila de viagem que improvisava como travesseiro. A luz contribuía para tornar seu aspecto ainda mais claro, como se não bastassem os cabelos loiros, agora sujos de poeira. E essa mesma luz servia para ressaltar a cor dos tijolos que se amontoavam desordenadamente naquelas paredes sem emboço.

Não sabia se já era tarde. Levantou-se batendo a roupa para limpar a terra que também havia entrado pela janela. Saiu do casebre com os pés descalços sobre a aridez do chão entrecortado pela seca. Sua única certeza era de que precisava seguir viagem. Caso contrário, corria o sério risco de ser encontrado justamente por quem não deveria encontrá-lo, de cair nas mãos sujas dos inimigos. Não queria nem imaginar o que poderia acontecer.

Bastou mais alguns passos para encontrar o vaqueiro que havia lhe concedido abrigo na noite anterior. Agradeceu o homem dizendo que não tinha como recompensá-lo por aquele favor, embora o sertanejo fizesse questão de deixar bem claro que não tinha intenção alguma de cobrar pela paragem. Chegou, inclusive, a oferecer um copo de café para o forasteiro, mas seu hóspede lamentou que não pudesse ficar para lhe fazer companhia. Estava com pressa.

A princípio, caiu na estrada a pé, mas sua idéia era fazer como em todos os dias, desde que iniciara a fuga. Em algum ponto do acostamento, quando as pernas já não agüentassem mais andar, sinalizaria com um pedido de carona. Uma carroceria de caminhão costumava ser suficiente para deitar o corpo e descansar um pouco mais, antes de pagar pela viagem ajudando o motorista a descarregar a carga e de dividir com ele um trago em um copo de aguardente.

Com isso, ganhou três mil quilômetros em cerca de uma semana. Estava cada vez mais distante de seu ponto de partida, mas mesmo assim não se sentia seguro o suficiente para que se estabelecesse em uma cidade só, sem precisar mais se deslocar pelo país. Tinha a sensação de que estava prestes a ser encontrado a qualquer momento, encontrando sua segurança apenas enquanto fugia, enquanto seguia sua viagem rumo a lugar nenhum.

Mas quando o oitavo dia de viagem já anoitecia, ele foi acometido por uma náusea repentina, um mal-estar que começou por tirar-lhe parte dos sentidos. A ponto de se escorar na fachada de uma das casas da modesta rua que percorria. Nem isso, contudo, foi suficiente para que se mantivesse de pé. Ele se esborrachou de bruços no chão, já completamente desacordado. E sequer sentiu que um desconhecido se aproveitava para roubar-lhe a mochila.

Demorou algumas horas até que uma alma se compadecesse daquele homem. Uma das meretrizes encarregada de abrir a porta do prostíbulo se surpreendeu ao ver aquele espécime tão diferente desfalecido bem diante dos seus pés. Foi o bastante para que se agachasse, apesar dos trajes sumários que poderiam lhe revelar alguma parte do corpo um pouco mais interdita. E embora imaginasse que não se tratava propriamente de um vagabundo, resolveu sacudi-lo para que acordasse e seguisse seu caminho longe daquele modesto lupanar.

Percebendo que ele permanecia imóvel, clamou para que as colegas viessem ajudá-la a puxá-lo para dentro do bordel. Algumas das que se prontificaram o fizeram realmente por compaixão e solidariedade. Bastou um grito da primeira meretriz para que as outras deixassem para trás suas maquilagens, corpetes e badulaques para oferecer auxílio. Outras achavam que não seria conveniente que ele permanecesse ali e atrapalhasse o movimento da casa durante a noite.

O problema é que não haveria um quarto que pudesse abrigá-lo, ainda que provisoriamente. Os cinco cômodos, exceto a sala, eram parte do rodízio das doze putas que faziam ponto no local. Foi nesse momento de dúvida generalizada entre as cortesãs que a primeira meretriz mais uma vez se compadeceu do desconhecido e decidiu abrir mão da féria da noite para que pudesse dedicar-lhe maiores cuidados no quarto menor, aos fundos do casebre.

Todas concordaram em trabalhar com um quarto a menos no rodízio, embora a dona da casa não aceitasse de muito bom grado aquela estranha presença. Temia que aquilo afastasse os homens da região, depois levantou a possibilidade de que tudo não passasse de uma armadilha para deixá-las na merda, segundo suas próprias palavras - um tanto mais exaltadas. Mas apesar dessas dúvidas e ressalvas, consentiu que ele ficasse, mas só até o amanhecer.

As meretrizes acomodaram com cuidado o homem sobre a cama e se apressaram em fechar porta do quarto para que ninguém mais testemunhasse a cena. Apenas Dulce continuou lá, limpando os arranhões e as feridas decorrentes da estranha queda do forasteiro. Aos poucos, foi notando que ele recuperava a consciência, que só evitava abrir os olhos subitamente para não maltratá-los com a claridade da lâmpada acesa sob a laje seminua.

Quando acordou, enfim, o homem tentou identificar pelas paredes o local em que estava. Olhou tudo ainda com os olhos de uma certa semiconsciência, embora já pudesse se considerar totalmente desperto. Percebeu as cores de um verde desgastado, o chão coberto de tacos descascados pelo tempo e o vento morno que soprava por entre as frestas de uma veneziana velha e mal trancada. E o principal: percebeu a maciez dos seios que o acolhiam e lhe protegiam a cabeça, debaixo de um bem compassado cafuné.

Sabia que o gesto não passava de uma mera demonstração de compaixão, mas há muito tempo não recebia um carinho assim. Só não sabia, na verdade, que se tratava de uma prostituta, que lhe concedia algumas horas de vigília, interrompendo sua sagrada atividade profissional por causa de um desconhecido. O homem não evitou revelar, por intermédio de um suspiro, que expirava um ar enternecido por estar aconchegado nos braços de uma dama.

Ao notar a satisfação do forasteiro sobre os seus braços, Dulce relaxou ainda mais a postura, até que a alça do sutiã lhe escapou do ombro esquerdo quase sem querer. E, levada pela sugestão do mero acaso, permitiu que a peça íntima lhe escapasse ainda mais, revelando-lhe um dos seios. Só que mais que oferecer o úbere farto ao hóspede de ocasião, ela trouxe a boca do homem e não se fez de rogada em enchê-la com o peito inflado de tanta volúpia.

Era de um regozijo ímpar a sensação criada por aquela sucção. Não havia nada de libidinoso nos lábios dele, somente um desejo infantil de continuar sugando, mesmo que fosse só o sabor adocicado daquela pele que se oferecia. E chupou como se fosse uma criança... chupou até que o vigor de um braço forte, e também desconhecido, escancarou a janela e lhe cravou duas balas nas costas, ceifando a sua vida e entristecendo a tão prestimosa prostituta.

Wednesday, October 25, 2006

A Ilha dos Símios

Daniel Soleil Noir

A nau continua encalhada sobre a areia da praia. As velas ainda insistem em balançar com o vento. Da mesma forma, tremula a bandeira hasteada em um dos mastros no convés. O pendão, aliás, parece tripudiar da má sorte daquela embarcação - assim como as aves, que chegam a se empoleirar sobre a amurada enquanto os urubus fazem a ronda à procura dos mortos. E embora o mau cheiro realmente os atraia, é mesmo inútil continuar procurando.

Único que restara desde o meio da travessia do oceano, o Capitão agora repousa sentado a uma pedra, de frente para o mar. Mas ninguém que o tivesse visto na hora do embarque seria capaz de reconhecê-lo, agora que abdicou dos trajes que indicavam sua patente. Da farda, sobrou apenas a calça branca. Os pés descalços já estão sujos de areia. E sem camisa, vem notando com alguma curiosidade sua semelhança com os macacos que vão pulando de galho em galho.

O Capitão tem a pele impregnada por um forte cheiro de suor. Está queimado também graças ao sol forte indicando o meio-dia. A fome ronca em seu estômago, mas ele ainda não cogita procurar algo que o alimente. Os víveres do navio já se acabaram todos. Nem mesmo as reservas sobraram dentro da despensa. E mais: nem mesmo os macacos trepados nas árvores, curiosos com sua presença, serviam para instigar-lhe o apetite.

Ele prefere dirimir a dúvida responsável por deixá-lo prostrado sobre aquela pedra. Não que não tenha mais forças para se mexer. Ainda lhe sobraram algumas. E a confiança na força da própria alma faz com que ele ainda não se desespere. Sabe que sua obstinação nesse caso é tamanha, suficiente para que encontre um modo de continuar sua viagem, rumo aos saques que ainda pretende empreender do outro lado do mundo.

Aos poucos vai se lembrando de cada momento da viagem. Sua tripulação era composta por trezentos homens, escravos em sua maioria, além de um exército mercenário pronto para deixar um rastro de morte pelas cidades por que passasse. Cabia aos escravos o devido armazenamentos das mercadorias roubadas, com um acondicionamento que permitisse a manutenção de seu perfeito estado quando o navio regressasse ao porto de onde havia partido.

De repente, o Capitão é surpreendido pela memória de que havia sido acometido por uma forte febre na primeira parte da viagem. Sentira-se mal, nauseado, e não entendia direito a razão daquilo diante da vasta experiência que tinha nos sete mares. Quase tombou para um dos lados, mas antes de cair sobre o convés, teve tempo de segurar-se na amurada, distraindo-se por um rápido instante com a transparência das águas naquele ponto do oceano. Pôde até ver um cardume viajando junto ao casco duro da embarcação.

Ao se recuperar, pelo menos aparentemente, voltou a olhar para o convés. E percebeu assim o rápido desaparecimento de sua tripulação. Seu navio estava deserto, sem uma alma sequer que lhe pudesse fazer companhia, ou mesmo obedecer a suas ordens. Parecia conduzir um navio fantasma, que singrava o mar imerso na solidão dos oceanos, sem nenhuma perspectiva de emergir de novo. Restava-lhe apenas restabelecer seu comando e atracar em algum lugar.

Mas qual teria sido a razão daquele desaparecimento em massa? Teria sido Deus o responsável por içar aquelas almas e lhe impor o castigo por tantos crimes? É o que se pergunta agora, que está em terra firme. Aproveita também para observar o navio à distância. A nau parece mesmo envelhecida, talvez a carcaça do que teria sido um dia. De longe, chegava a lembrar ainda o esqueleto de um cetáceo que também pudesse ter encalhado naquela praia.

Entre tantas indagações, a única certeza que o Capitão possui diz respeito à necessidade de deixar aquela praia, ir embora e retomar a sua rota. Mas precisa, no entanto, encontrar um modo de recrutar uma nova tripulação, para que siga viagem com a certeza de que conseguirá se lançar aos saques que ainda deseja fazer. Precisa, sobretudo, de uma idéia que possa colocá-lo de frente para a solução daquele maldito impasse que só o atrapalha.

À medida que o tempo passa, o Capitão vem sendo tomado pela sensação de estar perdendo aos poucos a sua condição humana. Bastam algumas horas e o cair da tarde para que ele já se sinta como se fosse um completo animal. Ao se dar cada vez mais conta de que está sozinho, e sem explicação para tal, o Capitão sente que é tão bicho quanto as espécies que se escondem em meio à vasta flora que o rodeia naquela desconhecida ilha deserta.

Até o ritmo de sua respiração começa a mudar, tornando-se um resfolegar raivoso de quem precisa atacar, antes sem saber exatamente o que. Sua derme já está tão dura que parece coberta por escamas, enquanto os pêlos que lhe cobrem essa mesma pele transformam-se em palha seca, pronta para forrar o chão das estrebarias das terras onde nasceu. E no lugar dos cabelos, que antes escorriam desgrenhados até os ombros, empapados de suor, existe uma crina endurecida, loira e mal-cheirosa, nojenta de tão oleosa que se apresenta.

De pé, o Capitão se embrenha no meio do mato à caça de uma solução. As folhas e os galhos nos quais esbarra pelo caminho ajudam a rasgar ainda mais sua calça branca, encardida pelo tempo em que passara sozinho cumprindo as funções dentro do navio. Passando por entre as árvores, o Capitão muda sua manobra diversas vezes, sempre levado por falsas impressões de que também está sendo seguido, de que poderia ser a caça de algum predador.

Eis então que o Capitão tem o pescoço assaltado por um chipanzé da região. Ambos começam a se debater, tal é a fúria incontrolável daquele homem. Ele chega a se livrar do bicho, que continua a pular ao seu redor. É quando percebe que, na verdade, é tão símio quanto o animal a sua frente. E que isso bem que poderia ser útil - decide, em um instante definitivo de loucura, formar sua tripulação com os macacos que infestam a orla.

Ele exerce um efeito quase que messiânico junto aos símios. Os macacos se movem de acordo com as suas coordenadas. Suas palavras já não são palavras, apenas grunhidos acompanhados por gestos bruscos, passos decididos, mesmo quando seus pés afundam rijos na areia da praia. Estão todos prontos para o embarque enquanto, sem saber, estão apenas fugindo... E pior do que ir de uma só vez para o inferno é simplesmente fugir assim do paraíso.

Wednesday, October 11, 2006

Weizen

Daniel Soleil Noir

Havia acabado de fincar sua raiz no corpo dela. E agora limitava-se a aproveitar aquele momento de dormência para lembrar que tinha acabado de conquistar um objetivo que há tanto tempo acalentava. Ao seu lado repousava uma menina. Uma menina como outra qualquer, com um nome tão prosaico quanto o das outras, mas capaz de se entregar de um jeito diferente de todas elas.

Atendia pelo nome de Martina. E chamada assim foi colhida pelas mãos inseguras de Bernardo sob uma ensolarada manhã de primavera. Ela parecia se oferecer passeando lépida pelos campos de trigo. Usava um chapéu de cor lilás que, mais do que propriamente protegê-la do calor, servia como mais um instrumento para flertar com ele àquela hora do dia.

Só quando teve os predicados de Martina entre suas duas mãos é que Bernardo viu a insegurança de outrora se esvair feito terra por entre os dedos. E assim já estava pronto para inspirar com calma o odor que daquela flor se desprendia. E de tão perto do nariz, não foi difícil que colhesse também a boca, a fim de lhe descobrir o sabor que ainda se escondia por entre os lábios.

O vento ia penteando o trigo da forma exata como Bernardo acariciava as madeixas de Martina. Ora com um sopro suave que lhe brotava da boca, ora com a espessura dos dedos escorrendo por entre a finura dos fios. Era um movimento contínuo, de uma carícia tal que nem mesmo Martina havia experimentado antes. Mas pelo jeito os fortes ventos do passado haviam mesmo ficado para trás.

Era mesmo raro ver algo crescer assim por aqueles campos. Mas foi só Bernardo bater os olhos para querer Martina junto de si. E agora, que acabara de possuí-la sobre aquela cama de feno, não poderia permitir que esse amor perdesse o viço. Estudava então o mínimo movimento das pálpebras cerradas de Martina. Talvez fosse mesmo possível traduzir seus sonhos de menina quase moça.

Não sem motivo, Bernardo duvidava um pouco de sua vocação para estender para todo o sempre o momento que passara. Nem se dava conta, no entanto, que já o esticava a partir da dormência do próprio corpo. Não tinha sono o bastante para que pudesse dormir, porém não estava desperto o suficiente para que contemplasse embevecido a nudez da jovem Martina.

As gotas de suor sobre a testa dela mais pareciam ter mesmo algum parentesco com o orvalho que cobria as folhas das plantas no Jardim do Éden. Seu corpo, que antes fremia de êxtase, agora tremia de frio. Não que houvesse alguma janela aberta, ou ainda uma fresta mal dissimulada. Existia, na verdade, uma diferença de temperatura entre o instante em que se conjugavam e a hora em que se recompunham daquela extensiva labuta.

As roupas caídas sobre o chão também pareciam folhas caídas de outono, derreadas depois de despencarem dos galhos daqueles dois jovens. E, desse modo, assumiam a condição de meras testemunhas do fôlego de extensa lavoura que aqueles dois corpos empreendiam um em favor do outro.

E foi por meio da seiva que lhe escorria da ponta do sexo que Bernardo semeou sua vida naquele ventre ainda virgem, naquele solo cheio de um húmus de libido, impossível de se encontrar em qualquer outra menina mais abastada no perímetro urbano. Era fértil o calor daquela pele, bem como também era quente o sabor daquela terra que os alimentava.

Mas onde teria estado a inocência de Martina durante esse tempo todo? Onde estaria essa inocência no momento em que ela engolia com ensaiada gula a raiz do amor que tanto bendissera? Qual seria o sabor da carne que logo esbarraria em seus dentes enquanto a fome de sua língua envolveria ansiosa a cabeça daquele membro?

Ela gozava de uma felicidade que nunca havia sentido, o que permitia que misturasse um riso incontido com algumas lágrimas a escorrer do canto dos olhos. Pequena, cabia toda sob o corpo de Bernardo, debaixo de sua pele masculina melada de transpiração. Sua derme delicada, bem como a entrada de sua cona apertada, era coberta por uma penugem loura como o trigo.


Quando acordou, Martina debulhou através dos poros um desejo ainda mais incontrolável por Bernardo. Queria senti-lo de novo, abrir-se como um favo à espera de seu amor. Precisava, contudo, manter sua aparência de menina para que ele não tivesse uma impressão equivocada do seu orgasmo. E desse modo os dois se amariam novamente até que a luz do novo dia viesse ceifá-los daquele chão.

Sunday, October 08, 2006

Tenochtitlán

Daniel Soleil Noir

Beijaram-se. Assim, repentinamente. E como se talvez se conhecessem. Como se o fato de já se conhecerem de vista fosse o bastante. Mas beijaram-se. E naquele átimo sequer houvera tempo para que se olhassem nos olhos. O beijo durou pouco, é verdade. Pelo menos o primeiro. Ela queria tomar o rosto dele em suas mãos e ter a mínima idéia de como era o seu olhar. Ele, por sua vez, queria continuar a beijá-la, mas conteve-se logo que os lábios de ambos se descolaram enfim.

Foi só nesse instante que ele teve noção de como era ver o tom da pele de Alice assim tão perto. Uma pele de terracota, esculpida pelos astecas em tempos imemoriais. Traços que já tivera a oportunidade de contemplar bem antes, mas que agora podia tatear com a suavidade da ponta dos dedos. Era uma textura completamente diferente daquilo que conhecera até então. O mais impressionante, porém, era a temperatura que sentia através das palmas das mãos abertas. Um calor para o qual não conseguia encontrar adjetivos.

Embora apenas estampasse um sorriso nos lábios recém-beijados, Alice por enquanto guardava em si uma sensação vitoriosa de que havia conseguido. Havia conseguido aquele beijo, ainda que na verdade quisesse bem mais. O que parecia impossível, no entanto, tornou-se presente tão de repente que talvez fosse difícil de acreditar. Ou mesmo especular assim o que poderia vir depois. O que viria depois daquele beijo.

As mãos dele então escorreram pelo corpo dela. Primeiro, vieram os ombros de Alice. Foi quando pôde se deter nos olhos dela por mais alguns instantes. Depois, desceu pelos braços, passou por trás dos cotovelos esticados, chegou a suas duas mãos. Era a hora de sentir a espessura dos dedos, daqueles dedos finos que há poucos minutos estavam em seu rosto áspero, em sua face feita de cedro. Não se contentou, contudo. E, quase que por um passe de mágica, alcançou-lhe os quadris.

Alice escolheu se deixar dominar por ele. Chegou a colar seu ventre junto ao abdômen dele. E ao confirmar que seus corpos eram mesmo tão conformes, teve uma rápida alegria, o suficiente para que pudesse esticar o sorriso estampado em sua feição. Seu olhar, por outro lado, continuava a esperar por uma nova atitude daquele homem. O que ele poderia dizer, agora que estavam tão próximos? Ao mesmo tempo em que a curiosidade a assaltava, tinha um certo medo do que pudesse dizer. Temia que ele se precipitasse em se despedir.

Só que ele não ousou dizer nada. Uma palavra sequer. Tomou partido mais uma vez daquele primeiro beijo para beijá-la de novo. Desta vez, queria se deter por mais tempo dentro daquela boca, com a única finalidade de subjugá-la. Ele queria que a sua iniciativa em beijá-la minimizasse a importância da coragem que ela teve em se insinuar naquelas semanas. Queria, em suma, mudar uma possível relação que já pudesse se estabelecer entre os dois a partir dali.

E seu plano surtiu efeito. Enquanto estava envolvida em mais aquele beijo, Alice procurava sentir em seu próprio paladar a doçura da boca dele, o aroma leve do seu hálito. Ele, ao contrário, sentia o sabor apimentado na ponta daquela língua, que fazia subir a temperatura da própria respiração. Era quente o ar que soltava pelas ventas. Bem como era quente o ar que tragava a partir da respiração de Alice, a injetar-lhe um novo ânimo dentro do peito. Mas ao se dar conta daquele afã, quis saber a razão daquilo, mesmo que para isso precisasse prescindir das palavras. E, entregue a essa curiosidade, deixou de ser agente do próprio destino.

Ainda se beijavam quando uma das mãos dele se fez valer daquele momento para invadir a porta de seu ventre. Era algo inimaginável, pelo menos a princípio, em plena luz do dia, mesmo que ninguém fosse capaz de flagrá-los no meio daquela ponte. Ela se surpreendeu e respondeu àquele gesto com um frêmito rápido e com as unhas afiadas a ferir-lhe os músculos retesados naquele abraço. Nem com isso ousou interromper o beijo. Sentiu, na verdade, um tempero diferente se metendo na mistura que faziam no cair daquela tarde.

Não havia mais como negar que havia uma curiosidade também da parte dele. Uma curiosidade na nudez de Alice. Uma curiosidade que logo se transformaria em desejo. E que assim se transformou. E foi o desejo que o levou a alcançar-lhe às nádegas, a apertar-lhe a bunda como se estivesse a colher um pomo macio. A cintura, junto à palma da outra mão, parecia pulsar em furor, como que para conduzi-lo à loucura. Pois a loucura voltaria a colocar Alice em vantagem e lhe restituiria a sagrada condição de quem havia começado a desejá-lo em segredo.

Ao notar que havia avançado com demais insensatez, ele voltou a se conter e optou por interromper aquele beijo. E quis saber até onde tinha chegado por meio da reação que se inscrevesse no rosto de Alice. Mas ela refletia uma felicidade incontida, sorria como que para convencê-lo de que era exatamente isso o que ela queria. E que o mais justo seria parar de sonegar-lhe o corpo, o que ela mais almejava desde que haviam se conhecido.

Insólita, aliás, também foi a forma como ambos se conheceram. Alice surgiu de repente, vinda de algum lugar acima da América Central. Ele se surpreendeu logo com sua presença, a qual julgou como deveras insidiosa. Insidiosa o suficiente para colocá-lo em tentação. E era justamente em tentação que evitava cair a cada dia que se viam, a cada dia em que ela se insinuava com sua alegria desinibida, com suas palavras quase sem medida alguma.

E se fosse pecado o nome da vontade de beijá-la, uma vontade que também chegou a guardar em segredo? Por que se arriscar se não existia certeza de que haveria futuro depois daquele beijo? Precisava antes responder a tais indagações particulares, pensar e refletir um pouco a respeito de tamanha tentação. Só desistiu de fazer perguntas quando percebeu que as respostas de tantos questionamentos se encontravam na sinuosa anatomia de Alice.

Era hora de despi-la. De tomá-la para si. Alice se entregava, sem privar-se, porém, da oportunidade de permanecer ativa, de deixar nele a impressão de que a iniciativa continuava sendo sua. E que sendo apenas um mero objeto, ainda demoraria um pouco mais até que descobrisse a real origem do desejo de Alice.