ironia, ainda que tardia

Tuesday, April 26, 2005

Púbicos

à Marie-France Pisier

Daniel Soleil Noir

Os outros meninos ardiam febris à chegada da aluna nova. Seu rosto lívido contrastava com os vastos cabelos pretos e cacheados que desciam felizes por suas costas alvas, cobertas pelo tecido branco da camisa do uniforme do externato. E não havia entre eles quem não saboreasse em segredo o nome da mocinha, repetindo-o em voz baixa, de si para si, assim que anunciado pela professora de Geografia. Colette. Apenas isso, sem volteios de pais mais criativos, e mais medíocres também. Uma descendência francesa escondida em algum ramo de sua genealogia e evidenciada nas sílabas daquilo que também poderia ser chamado de seu prenome.

A reação de Juca, todavia, foi ligeiramente diferente. Não que deixasse de compartilhar de alguns momentos daquela liturgia adolescente. Afinal, também se entregara à nova religiosidade do colégio, que apenas recentemente admitira classes mistas. O que significava, por sua vez, que todas as meninas, novas ou não, eram por si só definidas como uma novidade. A diferença era que Juca, em seu íntimo, desejava bem mais que contemplá-la à distância, enquanto a professora dava o ponto daquela semana. Digamos que desejasse, na verdade, ter diante dos olhos algo um pouco menos superficial.

O que de fato queria ver, e que por conta própria já imaginava, eram os pêlos púbicos da jovem Colette. Se soubesse definir a gama de sensações que lhe assaltavam, talvez pusesse a culpa naqueles olhos vivos, que mesmo pretos, acendiam-se em vivacidade quando ela sorria, sem nenhuma timidez. Se não fazia questão de esconder aquele seu ar de felicidade, era porque provavelmente, segundo a lógica do pensamento do rapaz, ela possuía algo de ainda mais precioso escondido em alguma parte de si. E a possibilidade de que fossem aqueles pêlos preenchia a lacuna da breve dúvida do menino Juca.

Juca, aliás, tinha fama de trovador no colégio, ainda que fosse praticamente um bicho do mato. Nos dois últimos namoros nos quais havia se enredado, passava horas e horas debruçado em seu violão, dedilhando notas delicadas à prenda que se dispunha a ouvi-lo. Aos doze anos, já havia abandonado o heavy metal. Aos treze, tornara-se um poeta bissexto. E agora, aos quatorze, cedera aos encantos de cantigas de outros poetas mais experientes que ele nas artes do amor. Mas era justamente a sua discrição em excesso que o colocava em segundo plano pela maioria das garotas. E ele se resignava, na maioria das vezes, a trancar-se no quarto em meio à modorra das tardes dos dias de semana, e a limitar-se ao exercício do velho e bom onanismo.

Apesar de ceder a tais instintos mais primitivos, Juca não desejava tão somente perder a virgindade com a recém-chegada Colette. Encarava a moça como a verdadeira réplica de uma santa, sem, entretanto, a beatitude e a castidade cristãs. Trocava esses atributos por uma aura de mistério que ela parecia carregar desde o dia em que havia sido apresentada, um tanto acanhada, diante do mapa político do Brasil pendurado sobre o quadro negro da sala de aula. E achava-a tão bonita – como não podia deixar de ser – que era como se cada traço dela viesse a sublinhar algum aspecto de sua beleza. Como os pêlos púbicos sublinhavam a mulher que era desde a puberdade - ainda que ela nem soubesse disso, tendo a vista ligeiramente enevoada por uma espécie de imaturidade pudica.

A silhueta de Colette já esboçava algumas curvas femininas, mais sinuosas que as das outras colegas de sala. Nas aulas de Educação Física, movimentando-se lépida dentro da quadra, era a artilheira do time de handebol. Bastaram algumas aulas para que ela já se destacasse como a melhor da turma na modalidade. Impressionava a sua elasticidade ao receber a bola próxima da área, lançando-se à frente num impulso, as pernas separadas, preparando o forte arremesso em direção ao gol. Juca sempre dava um jeito de admirá-la clandestinamente, saindo à francesa do gramado onde o professor dava aula de futebol de campo para os meninos afoitos por uma efêmera partida, antes da última aula de matemática do dia.

Uma vez, voltando para a casa com a mochila pesando sobre um de seus ombros, Juca percebeu que, naquela altura do campeonato, mesmo que viesse a namorar Colette, não tinha como vislumbrar seus pêlos púbicos sem que o pedido a constrangesse. Não teria autoridade para fazê-la baixar a calcinha de algodão em um canto escondido do colégio. E mesmo que tivesse, o gesto precisaria abrir mão dessa mesma autoridade para que ganhasse, na espontaneidade da menina, o seu devido valor. Isso entristeceu o moleque, que naquela tarde já não faria a lição de casa com o mesmo entusiasmo, nem jogaria basquete com o auxílio de uma tabela improvisada na área comum do prédio em que morava.

A triste distância não tinha nada de justa. Logo ele, que se contentava com a ante-sala do pecado! Com os pêlos aureolados que antecediam a essência concupiscente do brotinho em questão. Logo ele! Pobre coitado, que apenas ensaiava o Paraíso alcançado pelo coito e que sequer sonhava vivê-lo com aquela nova Eva, ainda casta. Contentava-se em vislumbrar o limiar daquela inocência benfazeja, o frágil horizonte que separava a criança da adulta que seria no futuro. E olhar, até onde sabia, não tira pedaço. Muito menos o pedaço protegido sobremaneira pelo tabu da virgindade. Ele chegava a se acreditar tolo demais por tantas formulações que lhe tomavam o tempo e recriminava-se quando temia imaginar que sua vontade não era legítima. Mas até os céus lhe dariam razão.

Porque não pensar nisso seria um crime de lesa-puberdade. Seria ferir a natureza com a antipoesia. Pena também que ele era jovem demais para entender isso. Era melhor no Teorema de Pitágoras. Em calcular com destreza que o quadrado da hipotenusa era igual a soma do quadrado dos catetos. Mergulhava nos números da matemática, da física e da química sem saber que a vida, de fato, nem dependia de tais ciências exatas e periféricas. Que as três ciências supracitadas podem até explicar um pouco a natureza, mas que a poesia dos números não contém o lirismo de uma subjetividade que, por sinal, explicava seu desejo pelos pêlos de Colette. E por que não os pêlos de outra garota? De Flávia, Luíza ou Mariana? É aí que vem o que há de mais subjetivo nisso tudo: porque não identificara nelas a mesma graça do sorriso que se abria a partir dos lábios espertos, passível também de todos os adjetivos que ele poderia imaginar.

À noite, Juca fechava os livros, preparava a mochila, apagava a luz do quarto e pensava um pouco na morte da bezerra para, enfim, adormecer. E a morte da bezerra incluía diversos pensamentos: uns inomináveis, outros nem tanto. Mas dia sim, dia não, queria saber o que Colette talvez fazia naquele exato instante, quase sempre por volta das dez, dez e meia.

Para ele, Colette dormia sobre um leito forrado de pétalas de rosas vermelhas, rodeado por margaridas acesas que se apagavam ao primeiro ressonar da moça, com as corolas brancas fechando-se quase como as folhas de uma dormideira. Daí então vinha, segundo Juca, os cuidados de pai e mãe, que puxavam, cada um de um lado, a ponta de um lençol branco até o pescoço dela. E por baixo do lençol, ela talvez usasse uma camisola diáfana, sob a qual podia-se notar aquilo que o adolescente tanto queria ver. Mesmo com a veneziana fechada, a lua, que havia lhe emprestado a cor da pele, velava o seu sono, bem como som das cigarras lá fora também calava os latidos dos vira-latas pelas ruas do bairro em que ela morava. Tudo para que gozasse de um sono tranqüilo. Pelo menos na cabeça do Juca.

Mas nem tudo eram (ou teriam sido) flores para a menina Colette. Demorou, por exemplo, para se acostumar com a idéia de que seus seios despontavam mais rapidamente que os das colegas, atiçando os meninos e a inveja das amigas. Faziam troça de seu nome francês, como se a sílaba tônica do substantivo próprio fosse fechada, não aberta. E mesmo os que acertavam a pronúncia não se furtavam em compará-lo ao som de palavras como chiclete e gilete. As mães dessas mesmas alunas, ao tomarem conhecimento do nome da garota nova, mostravam-se alarmadas com aquilo que definiam, em fofocas de fim de tarde, como a alcunha de uma cortesã prestes a desabrochar. Colette, ao contrário, não chegava a ter complexo disso. Por outro lado, contudo, não podia se entregar ao apoio dos meninos, até para não confirmar as suspeitas dessas mulheres. E mesmo que tal problema não houvesse, temia, de certa forma, entregar-se ao pensamento deles. Uma vez, quase se sentiu impelida a decidir por algo, por ocasião da primeira menstruação. Fora surpreendida, de repente, pelo fato de tornar-se adulta, tingindo de vermelho a infância que já ficara para trás. O primeiro óvulo já se despedia de seu corpo e seu ventre se resignava à espera do homem de sua vida.

Na semana da Pátria, o colégio fez um passeio cívico por um bosque bem distante do centro da cidade. A intenção era a de fazer com que os alunos do externato se sentissem em uma expedição das Forças Armadas ou em algo que o valha. Mesmo as meninas, aliás. Foi naquela quinta-feira que Colette e Juca se desgarraram da turma, um sem consciência do outro, e se encontraram sem querer à beira do útero de um lago, guardado por uma seqüência de árvores crespas. Ali, começaram a conversar, a rir e, passadas algumas horas, deram-se conta de que estavam perdidos. E como a preocupação de pais e professores talvez os absolvesse daquela falta, decidiram tomar um banho naquelas águas calmas para se refrescarem do calor. Juca então pôde perceber a almejada penugem se insinuar através da lingerie. Mas poupou o êxtase para quando, minutos mais tarde, alcançasse com a sua carne a semente no ventre de Colette.