ironia, ainda que tardia

Thursday, May 26, 2005

Ensaio sobre Fabiana

Daniel Soleil Noir

Fabiana era a única mulher para a qual olhávamos e não víamos apenas e tão somente as feições que lhe compunham seu semblante delicado, mas enxergávamos, sem dificuldades, a sua própria alma. Embora nem todos a identificassem como tal, eu sempre tive consciência disso. Era uma luz ao mesmo tempo forte e vulnerável. Uma força entrevista em seu sorriso; uma vulnerabilidade justificada pelo simples fato de estar exposta aos olhos de quem, como eu, sabia do que se tratava, que se tratava, na verdade, de sua essência.

Seu corpo feminino, a curva do quadril, o modo como seus cabelos lhe caíam sobre o rosto nada mais eram que fronteiras que o tamanho dessa mesma essência jamais respeitou. Limites eternamente transpostos por sua luminosidade. Era o que permitia, no fim das contas, que as fotografias conseguissem capturar a sua imagem e, por meio de nuances de luz e sombra, juntamente à manifestação de algumas cores, registrassem no filme aquilo que eu sabia ser somente a sua aparência. Aparência que, mesmo muito bonita, perdia para a beleza daquilo que sabíamos ser a sua alma.

Não é à toa que ainda tenho comigo aquela foto que encontrei por acaso. O rosto sereno olha para a câmera em cumplicidade não com o fotógrafo, mas com qualquer um que a veja fotografada. Está deitada sobre uma rede e a cabeça repousa sobre as mãos postas, entre o crochê e a sua própria pele. Nota-se a curva de seu já citado quadril e as pernas dobradas, quase escondidas. E mesmo achando-a bonita assim, sei que sua beleza é maior pessoalmente, já que a sua essência se dilata para além das aparências e nos alcança o fundo do peito.

O olhar de Fabiana nunca é simplesmente um olhar. É uma sugestão, um instrumento da alma para nos dizer tudo o que pretende sem que seja necessário fazer uso das palavras. E por mais que a frase anterior seja um lugar-comum, seu olhar é o instrumento mais eficiente - e também o mais forte - para a conquista do que deseja. Como se não bastasse, é justamente por causa dele que fica mais evidente ainda que o que estamos vendo diante de nós é algo bem maior e mais importante que a silhueta de uma mulher recém-chegada à fase adulta e que eleva à enésima potência, graças ao destino, essa sua condição feminina. E só sendo o objeto de desejo desse seu olhar é que se percebe a sua intensidade. Bem como as suas intenções...

Quanto a mim... Eu me fiz de rogado no início. Fiz questão que a minha alma descrevesse um movimento inversamente proporcional ao da essência de Fabiana. Meu orgulho masculino não me permitia entregar-me tão facilmente ao poder de persuasão que tinha a sua simples presença. Presença essa que se espalhava para qualquer lugar em que a sua luz pudesse se projetar ou mesmo onde pudesse se manter gravada em película, na forma de fotografia. Por alguns dias, escondi seu retrato numa gaveta, evitei abrir os olhos e, para aqueles que me viam, inclusive Fabiana, eu não passava de um homem opaco, de pele fosca, sem qualquer luminosidade.

E de tanto me esconder de mim mesmo, ocultando totalmente a minha própria alma em alguma parte do corpo, houve um momento em que o resto de luz que ainda existia aqui dentro se dissipou por completo. Sumiu de repente. Esmaeceu. Eu havia acabado de virar noite. Uma noite sem estrelas ou lua. Triste e sem esperança, envolta apenas por arrependimentos. Creio que tenha sido o meu orgulho a ensejar esse crepúsculo prematuro, já que a minha vida também acabara de avançar apenas alguns minutos depois do amanhecer. Esse orgulho me impediu de revelar o que eu sentia por Fabiana e escureceu até mesmo a minha face antes naturalmente iluminada.

Mas Fabiana, por sua vez, não se fez de rogada em querer acender a sua luz novamente aqui dentro de mim. Apareceu como um feixe que invadiu o meu corpo durante a madrugada. E foi por uma discreta fresta do corpo dela que tive restituída a luz que chegou a me faltar por medo da vida. E juntos, unidos naquela contundente comunhão, estávamos envolvidos pela mesma aura. Éramos aquela mesma aura e acredito até que deixávamos para trás a nossa condição humana para que viajássemos anos-luz em nossa essência unificada.