ironia, ainda que tardia

Tuesday, February 13, 2007

Antes do meio-dia (2ª versão)

Daniel Soleil

Ela pousou devagar sua mão macia sobre o meu peito sobressaltado. E de repente surrupiou dos meus lábios um beijo rápido, com um gosto de morango. Respondi apenas com um sorriso encabulado enquanto meus cílios fremiam. Eu respirava ofegante, num misto de dúvida e contentamento.

Mas pelo menos eu sabia que ela não tinha se atrasado. Chegou bem antes do meio-dia. E me encontrou ainda deitado na cama. Parecia mais bonita depois de tanto tempo. Ou talvez os raios do Sol que entravam através da janela estivessem sendo generosos com sua silhueta delgada. Seu sorriso aberto e seguro de si aumentava ainda mais minha surpresa diante de sua chegada. E eu contemplava mudo e embevecido as discretas marcas que o tempo já começava a deixar em seu rosto.


Cadê as flores? – Audrey perguntou. Sim, eu sei, eu havia prometido flores para quando nos reencontrássemos. Rosas colombianas, gérberas, margaridas, orquídeas, hortênsias e girassóis. Dispostas num arranjo tão caótico quanto minha própria agenda de promessas não cumpridas.

Prometi também parar de fumar, me lembro bem. Mas os móveis da sala continuam queimados por pontas de cigarros e meus ternos usados fedem a fumaça. Prometi parar de beber. E reconheço que não consegui. Sempre perco a hora de acordar e chego atrasado ao trabalho por causa do excesso de álcool.

Ainda bem que ninguém nota a minha ausência no banco. Eu sou o homem invisível. Funcionário padrão, mas invisível. Naquela sexta-feira mesmo eu tentava curar uma nova ressaca. E distraído com a mesmice da minha própria rotina, nem percebi a chave girando na fechadura, a maçaneta rodando e a porta se abrindo num ponto longínquo do meu apartamento minúsculo.


Você voltou! – exclamei embasbacado. Voltou vestida num mantô de lã alaranjado, com manga sete oitavos e sete botões verticais. Com franja e rabo-de-cavalo prendendo seus lisos cabelos pretos. Voltou cinco anos depois, exatamente como havíamos combinado. Eu sabia que demoraria. Não imaginava que demoraria tanto. Para se ter uma idéia, no dia anterior, eu era só desilusão. Acreditava piamente que nunca mais nos veríamos. Que seria impossível esquecer tudo de ruim que havia acontecido entre nós.

Mas eu sequer desconfiava que, de minha parte, tudo já estava esquecido. E que bastava esperar pela chegada daquele dia 28 de fevereiro. Mesmo que não houvesse a segurança de que ela chegaria mesmo nesta data. Então, sem saber que Audrey viria realmente, aproveitei a noite e enchi a cara num bar qualquer do Baixo Gávea. E voltei para a casa carregado por outro solidário companheiro de copo. Do contrário, dormiria com a boca na sarjeta do calçadão ou de bruços na praia, com a barba toda suja de areia.


O olhar bucólico de Audrey me fitava e ele foi a minha deixa para roubar-lhe um beijo também. Um beijo demorado agora. De mãos nervosas, de braços quentes segurando-nos num abraço apertado. Um beijo que enlaçou os nossos corpos como antes. Como num passado em que éramos felizes. Em que acordávamos juntos todas as manhãs. Em que sonhávamos um com o outro.

A melhor época de nossas vidas; ela sussurrou assim que descolamos os nossos lábios. Assenti com um tímido piscar de olhos. E imersa no instante calado que se seguiu, minha mão esquerda se socorreu nos finos dedos dela. Audrey permitiu que eu me apossasse novamente daquela pequena amostra de sua pele. E secou, com a ponta do polegar, uma lágrima que escorria pela minha face. Eu disse "tanto tempo". Ela disse "não importa". Eu disse "mil oitocentos e vinte e seis dias de separação". Ela disse que era "bobagem".

E pensar que eu a perdi para a Esplanada dos Ministérios... Para o Palácio do Planalto, para o Congresso Nacional. Nas noites em que não bebia, eu costumava sair apressado da agência e correr para a casa. Ligava nossa antiga tevê de quatorze polegadas e não desgrudava os olhos do telejornal.

Nos primeiros meses, entretanto, não surgiu um stand up sequer com Audrey na televisão. Nenhuma aparição rápida, de alguns segundos, que já me servisse pra matar um pouco das saudades. Muito menos um off numa nota coberta pra que eu pudesse ouvir sua voz. Restava-me somente a eloqüência da deputaiada. A retórica sem nexo do Executivo. A série de bravatas do Senado Federal.

Mas no momento em que acabavam as notícias (e subia o letreiro com os créditos), eu não ousava desligar o televisor. Temia que um silêncio aterrador tomasse conta do ambiente. Colocar um disco na vitrola talvez não adiantasse. Entrava no ar a novela das oito - às nove horas - e aquelas paixões de mentira até me consolavam um pouco.

Se você quiser tomar um café, sua xícara predileta continua na cristaleira da cozinha; sugeri. E não só a xícara permanecia no lugar. Sua escova de dentes (cor-de-rosa, com detalhes em branco) mantinha-se pendurada dentro do espelho do banheiro. Bem como as toalhas que ela gostava de usar estavam na terceira porta do guarda-roupas de cerejeira.

Audrey, aliás, também não levou para o Cerrado suas fitas com séries gravadas da tevê a cabo, que ainda se enfileiravam sobre uma rústica prateleira de madeira na sala. Seus livros de História da Arte se amontoavam num espaço exíguo da estante de mogno. As revistas que ela assinava foram preservadas para futuras consultas. Em suma, não mudei nada na decoração, exceto um vaso de porcelana, pintado com técnica japonesa, que se estilhaçara por causa de um descuido meu numa faxina de segunda-feira.

Nós havíamos sido só felicidade - até que um dia nos separamos e Audrey levou embora um bom pedaço dos sonhos que construíramos juntos.

Mas eu voltei; ela reiterou como se lesse meus pensamentos. Audrey cumpriu sua parte no trato, é verdade. Concordamos em nos encontrar ao meio-dia de 28 de fevereiro de 2003, após cinco anos de separação - um intervalo, para ser mais exato.

Audrey aproveitou uma boa oportunidade e se transferiu para o DF. Eu fiquei. Fiquei para tomar conta do lar onde talvez reeditássemos a felicidade de outrora. Fiquei para contemplar os nossos fantasmas se deslocando pelos cômodos vazios, compensando, de certa maneira, a solidão que se instalara ao meu redor. Fiquei; às vezes esquecendo, às vezes lembrando. Às vezes acreditando, noutras descrente de nossa promessa.

Estamos juntos enfim; cochichou Audrey ao pé do meu ouvido antes de mordiscar o lóbulo de minha orelha. Ela sabia que eu gostava disso. Sabia que eu adorava sua respiração assim tão próxima. Sentir o calor do ar que ela expirava. Em seguida, percorreu o meu tórax com a mão por baixo da camisa do pijama, eriçando os ralos pêlos do meu peito. Não satisfeita, começou a apertar minha coxa com força, a morder o meu pescoço...

E eu recebia suas carícias passivamente, enredando-me na libido de Audrey sem retribuir nenhum de seus gestos. O meu corpo sentado sobre o colchão estava inerte, feito um boneco à mercê da paixão alheia. E eu tremia sem sentir frio. E não sentia frio porque não sentia nada.

- Desculpe-me, Audrey - ousei interrompê-la tomando-lhe os pulsos bruscamente. Não tenho certeza, mas... eu acho que não te amo mais. Não, não há outra pessoa. Não precisa se levantar da cama. Não precisa me encarar como se eu estivesse proferindo um desatino cruel. Apenas ouça, por favor. Isso não significa que eu te queira mal. Significa apenas que quero te guardar em algum lugar da memória. Consultar a beleza do seu semblante nos nossos álbuns de retratos, cujas fotos amareladas imprimem a sua imagem. A imagem de uma Audrey rolando sobre a grama do Aterro numa manhã de domingo, ou bêbada e risonha pelas calçadas da Gávea num sábado à noite. Fique brava comigo se quiser. E, se preferir, nunca me perdoe.

Audrey abotoou a roupa, me beijou o rosto, deu um sorriso sem graça e saiu do apartamento pela porta dos fundos.

Tuesday, February 06, 2007

Amor calado

Daniel Soleil

O amor é a arte daquilo que não se diz. É o que não se fala. O que não se pronuncia. É aquilo que preenche o espaço entre uma palavra e outra. O amor é o engenho daquilo que se deixa nas entrelinhas. É um sentimento que se traduz calado, a palavra que se cala no momento mais oportuno. É o que acontece durante o silêncio e que, ao mesmo tempo, silencia a palavra para que esse mesmo amor não se quebre, pereça, e assim se perca para sempre.

O verdadeiro amor não é aquele que se declara à primeira vista. O verdadeiro amor se cala quando se percebe amor. O verdadeiro amor é aquele que se cala e não se declara... Ele bate mudo dentro do peito e não se faz ouvir. Prescinde das palavras quando elas são menos necessárias. E se faz presente nas frases que não são ditas, naquelas que se transformam em olhares, em meneios, gestos, temores, em sorrisos. O amor é o exato momento em que as palavras emudecem.

E eu mesmo fiquei mudo quando percebi que era amor o que eu sentia por ela. Não havia mais o que dizer. Não que as palavras já não fossem mais suficientes. Não era este o caso. Elas bem que poderiam descrever aquilo que eu sentia, dando conta por completo daquele meu sentimento. Mas havia o risco de que elas quebrassem o encanto e partissem esse amor antes mesmo que ele fosse correspondido. Eu precisava conquistá-la fora do domínio das palavras, como se o meu amor fosse o pretexto para um jogo. Um pretexto para que a interpretação do movimento das peças dissesse mais que qualquer frase, que qualquer declaração de amor.

Era estranho vê-la sem que eu pudesse lhe dizer algo. Era estranho dissimular o sorriso de quem se cala subitamente. Por outro lado, embora eu ainda nem soubesse, era por intermédio da verdade que se inscrevia nos meus olhos que eu comunicava o que sentia. A diferença era que ela precisaria de muito mais tempo para compreender tudo aquilo que eu lhe omitia. Ela precisaria, a princípio, sintonizar seus olhos com os meus olhos. Mas eram raros os instantes em que isso acontecia, o que demandaria mais tempo ainda. Isso, porém, não importava.

Não me incomodava aquela brincadeira de amar sem o auxílio das palavras. Muito pelo contrário. Eu gostava dos caminhos que tomávamos dia após dia. Até dos nossos desencontros eu gostava, quando nos perdíamos um do outro em mal-entendidos, quando deixávamos de entender tudo aquilo que não se dizia exatamente, aquilo que não dizíamos um para o outro. Era assim que nos dávamos as costas e saíamos perdidos em meio a um enxame de dúvidas que também se calavam. Dúvidas que, se fossem ditas, poderiam matar esse amor.

À medida que nos calávamos, no entanto, eu sentia que esse amor aumentava. Fermentava e fremia feito uma bomba, devidamente alocada junto ao coração. Eu chegava a ouvir a contagem aberta dentro do peito e, mesmo que eu soubesse que isso não passava de ansiedade, temia que esse amor explodisse antes da hora, em uma profusão de palavras inúteis que poderiam ser traduzidas como alguma espécie de desespero, como uma loucura passageira que se disfarçara de amor. Mas daí então eu sossegava e voltava à tranqüilidade daqueles que se calam por amor.

Eu chegava a aproveitar o silêncio para contemplá-la com mais calma, dedicando-me aos detalhes mais improváveis, aos gestos mais discretos e mesmo às palavras que ela dirigia às outras pessoas. E desse modo eu também buscava saber o quanto ela pensava em mim, de que maneira eu habitava os seus pensamentos – seus sentimentos, inclusive. Era um exercício árduo, que exigia de mim uma atenção demasiada, encontrando uma hora um sorriso fugaz, e em outras a alma singela de alguma poesia.

Passados alguns meses, percebi que este amor poderia encontrar alguma vazão no que eu pudesse escrever a seu respeito. E isso explica a razão destas linhas. Era um modo de fazer uma concessão à palavra, desde que eu pudesse contar com a garantia de que ela permanecesse escrita e, ao mesmo tempo, oculta. Sem o risco de que caísse em mãos erradas. Seu registro deveria se perder nas folhas de um caderno guardado ao fundo de uma gaveta fechada, num armário antigo, num quarto trancado, um cômodo sem utilidade. E sua existência não passaria de um detalhe desconhecido. E assim até as palavras deveriam se calar.

E foi calando que eu também me dei conta de que ela também me amava. Ela me amava – em sua mal-disfarçada surpresa ao me ver de novo, na explícita saudade que se antecipava a cada despedida, no modo como ela respirava ao meu lado, na maneira como arfava, fingindo um sorriso sem jeito na hora em que mais queria dizer alguma coisa. Mas ela também não podia dizer nada. Mesmo que esse fosse um amor recíproco.

E foi engraçado o momento em que eu percebi isso. Era como se eu tivesse condições, a partir dali, de antecipar todos os movimentos do seu jogo. Era como se eu soubesse que cartas ela tinha nas mãos e quais meneios ela podia lançar à mesa. Tudo, claro, sempre sob a aura do imponderável – pois todo amor que se preze, no começo, é imprevisível. Não nego, contudo, o quanto era valioso saber aquilo. Eu poderia manter meu amor calado durante a justa medida de tempo que nos separasse da nossa comunhão – comunhão de corpo, alma e coração.

Ela, por sua vez, ainda não sabia que eu a amava. Sua intuição ainda não havia alcançado o que eu apenas sugeria, sem que eu pudesse dizer qualquer coisa em favor do meu amor. Para ela, o que se inscrevia nos meus olhos poderia não passar de carinho. Ou talvez fosse ambíguo demais para que interpretasse com exatidão. Um amor que queria se revelar, mas que por enquanto se restringia ao terreno das entrelinhas, o sagrado espaço que as palavras não profanam e em que o silêncio é uma dádiva, não um castigo. E isso era o suficiente para deixá-la insegura a meu respeito.

Essa insegurança aparecia em seus lábios entreabertos, nos gestos que não se completavam quando estávamos próximos, no meio-sorriso que não se abria por completo. Ela tinha um certo receio de se sentir vulnerável e escondia os próprios olhos sempre que achava necessário. Mesmo quando nos abraçávamos, ainda como amigos, ela se recolhia com prudência, recolhendo os braços e contraindo o resto do corpo, colocando-se de novo a uma distância segura, protegendo-se de um beijo que eu lhe pudesse roubar – e que, segundo ela, poderia não ter nenhum significado relevante para mim.

Mas que culpa eu tinha se ela não conseguia identificar a quantidade de ternura que morava aqui dentro? Ou será que eu também me protegia ao tentar dissimulá-la? E assim construía mais que uma aura de mistério, mas uma ambigüidade que sempre levaria à dúvida, qualquer que fosse a pessoa que olhasse para mim? Eu tinha que expressar com mais clareza que os nossos desejos eram equivalentes. Eu precisava revelar, por intermédio de um sorriso, que eu não desejava mais do que ela também queria. Só que se eu dissesse qualquer coisa, ela poderia imaginar o contrário, e diante da intensidade que se abrigasse em cada palavra, poderia entender justamente o oposto do que eu quisesse dizer.

Sem as palavras, nossos dilemas se tornavam mais íntimos, mais intensos. Ela, pelo menos, compartilhava suas dúvidas com alguma amiga que lhe servisse de confidente. E quanto a mim? O meu amor era um segredo que eu não ousava pronunciar. E não o pronunciava a ninguém. Se eu não o escrevesse, e dessa forma o confessasse a uma folha de papel, eu o manteria trancado dentro do corpo como se ele fosse uma espécie de dor. Mas isso eu não queria. A dor e a tristeza não poderiam fazer parte do nosso jogo. Pois o amor que dói não é amor. É paixão. E toda paixão sempre me parece pouco. Pouco, e quase sempre efêmero.

Inúmeras foram as ocasiões em que eu me perguntei em silêncio se calar não seria deixar a realização do que sentíamos unicamente a cargo do destino. Será que não havíamos encontrado neste amor calado uma desculpa para que omitíssemos nosso sentimento? Escolhendo a tranqüilidade de um amor secreto em oposição à chance de uma possível repulsa – embora eu já soubesse que ela também nutria o seu amor por mim?

Nossa retórica muda, entretanto, trouxe suas respostas antes que tantos questionamentos pudessem se transformar em desespero, elevando nosso grau de ansiedade à enésima potência. E tudo se precipitou no instante em que ela percebeu a reciprocidade desse nosso amor calado, no cravado minuto em que ela descobriu que o amor que cala é o mesmo amor que consente.