ironia, ainda que tardia

Wednesday, January 30, 2008

Mil e duzentos batimentos por minuto

Daniel Pereira Frazão

Ela usou o punho da blusa de moletom para desembaçar o vidro do ônibus. Poderia ter sido um lenço de papel, uma flanela, ou mesmo sua sombrinha fechada. Mas estava ansiosa para ver o dia lá fora, desviar os olhos da modorra estampada nas faces dos outros passageiros e talvez até sonhar um pouco a caminho do trabalho.

O dia havia amanhecido com chuva – muita chuva, aliás. O trânsito complicado tornava o trajeto ainda mais longo, o que, por si só, já servia para agravar os maus-humores a bordo. A sorte era que o ônibus não estava lotado, embora a maioria dos lugares estivesse ocupada e, a cada ponto, subisse mais alguém.

A primeira coisa que ela viu depois de desembaçar a janela foram as folhas de uma árvore do outro lado da rua. Elas pendiam um pouco a cada pingo e assistiam com calma ao congestionamento, que se estendia a perder de vista. Depois, enxergou a praça mais adiante, onde, aos sábados, senhoras e senhores costumam montar uma conhecida feira de antiguidades - faça chuva ou faça sol.

Mas, do mesmo modo que ela queria ver o dia lá fora, um beija-flor voava ao lado da janela do ônibus, a fim de conferir de perto aqueles seus olhos azuis. Ela não chegou a notá-lo, a princípio. Alternava-se, na verdade, entre a visão das folhas da árvore e dos primeiros detalhes da praça, vazia àquela hora da manhã.

O beija-flor é um bicho que gosta das cores. Talvez por isso tenha se interessado por aquela passageira em especial. A ave permanecia em sua corte mesmo quando o ônibus se deslocava por um trecho mais longo em meio ao engarrafamento. Batia suas asas em um ritmo frenético e mantinha seu bico afilado apontado para cima, como se assim quisesse chamar mais atenção para si.

Enquanto isso, os olhos da moça continuavam distraídos. Eram dois pontos azuis que se destacavam em seu rosto claro, tenro, semelhante ao de uma menina. À primeira vista, não parecia ter mais que vinte e poucos anos. Ao mesmo tempo que apresentava uma certa displicência, com seu moletom de um cor-de-rosa desbotado e os cabelos presos com elástico de escritório, tinha também uma postura séria e um semblante que não revelava sequer o esboço de um sorriso.

Era surpreendente, no entanto, a obsessão do beija-flor por aqueles olhos. Com tantas flores pelo caminho, no jardim dos antigos sobrados que se enfileiravam pelas ruas transversais, ele preferia voar sobre a avenida e cortejar uma moça comum, que havia se levantado da cama com o único objetivo de ir para o trabalho.

Havia momentos em que o beija-flor ficava imóvel, como alguém que se detém um breve instante na fruição de uma obra de arte. E logo se movia célere para trás, como que surpreso diante de mais algum detalhe daquela íris azul turquesa.

Até quando o ônibus saía de uma rua para outra, na seqüência de seu itinerário, a ave acentuava seu assédio, com um esforço que parecia em vão, porque a moça permanecia distraída, quieta sobre o banco do veículo, com os braços cruzados em cima da bolsa a tiracolo, que lhe fazia companhia na viagem.

O beija-flor dava-se por satisfeito, porém, quando percebia que mesmo através do vidro fechado, e debaixo de toda aquela chuva, conseguia ver aqueles olhos claros. E ainda que isso não fosse o bastante, já era muita coisa para um bicho tão pequeno, que não tinha mais que oito centímetros e quatro gramas de peso.

Conseguia, inclusive, dar atenção a outros detalhes ainda despercebidos – a outras cores estampadas naquele semblante: o tom de rosa nas maçãs do rosto, o vermelho suave de seus lábios finos, o castanho-escuro dos cabelos presos num rabo-de-cavalo, feito de improviso, pouco antes de sair de casa.

O passarinho percebia até que, enquanto o ônibus se esforçava no intuito de se livrar do trânsito, a moça ficava inquieta e sentia-se cada vez mais presa dentro do coletivo. O passageiro a seu lado e o banco à frente limitavam seus movimentos. E a janela fechada, por causa da chuva, chegava a lhe provocar falta de ar.


Cerca de uma hora e meia depois de usar o punho do moletom para desembaçar a janela, a moça chegou ao seu destino. Soltou um suspiro aliviado assim que desembarcou e pousou os pés sobre a calçada. E foi nesse exato instante que o beija-flor fez jus à sua natureza para fecundar sua liberdade no ventre daquela moça sem esperanças.

Friday, January 18, 2008

Pranto

Daniel Pereira Frazão

São sete horas da manhã e uma moça bonita chora no ponto de ônibus de uma movimentada avenida de São Paulo. Não chore não, menina bonita, se não vai borrar a maquiagem. Mas este não é um choro copioso, não. É apenas uma lágrima que escorre. Uma lágrima caudalosa, única, que, ao chegar ao final de seu rosto, talvez penda um breve instante antes de se transformar em uma gota na calçada.

Pobre menina triste. Não lhe ocorre a possibilidade de interromper, com um dos dedos, o percurso de seu choro. Sua expressão, aliás, permanece inalterada. Mantém o semblante lívido, calmo, a postura tranqüila e os braços cruzados, com os pés lado a lado, junto ao meio fio. As outras pessoas, que se aglomeram no ponto, sequer percebem que a moça bonita está chorando. E ninguém se aproxima dela com a intenção de secar aquela lágrima inesperada.

Enquanto isso, eu me pergunto o que ela fará quando seu ônibus chegar, enfim. Será que terá coragem de subir, mesmo com uma lágrima rolando sobre uma das faces, prestes a precipitar-se? Ou vai esperar que o choro seque para que assim tome coragem de subir os degraus à porta do coletivo? É difícil saber. Preciso parar minha rotina para observá-la e satisfazer minha curiosidade.

Ontem, praticamente neste mesmo horário, mas uns três pontos antes, era outra moça que chorava. Suas lágrimas, no entanto, eram mais copiosas e as demais expressões de seu rosto também estampavam sua tristeza. Até então, não era comum ver mulheres aos prantos assim, no meio da rua. Qual era a razão de tanto choro? E os soluços que revelavam um pouco mais a intensidade de sua dor...

A menina do dia anterior, por sua vez, não estava sozinha. Nem todos ao redor estavam indiferentes. Uma mulher mais velha lhe dizia algumas palavras de conforto, enquanto passava os cabelos da moça chorosa entre as frestas dos dedos de sua mão esquerda. O problema era que a confusão de carros na avenida não permitia que eu escutasse qualquer frase. Eu via somente os lábios de ambas contornarem o desconsolo de uma e a consolação da outra.

E se eu, de repente, me dispusesse a consolar a moça que agora chora à minha frente? Sim, eu poderia me redimir da indiferença de outrora com outras moças que um dia já choraram perto de mim. Eu só precisaria me aproximar com discrição, colocar a mão sobre um de seus ombros e perguntar, com a voz moderadamente baixa, se poderia lhe ajudar com algo. Estaria, desse modo, disposto a fazer qualquer coisa que colocasse fim àquele pranto.

Lembro agora, porém, que se trata de uma lágrima apenas. E que, antes que eu possa me aproximar dela, esse choro já pode ter chegado ao fim, tendo deixado somente um rastro salgado sobre aquele rosto delicado. Por mais que ela precisasse de uma atenção, ou de algum conforto, não haveria mais razão para que eu me intrometesse, pois sua tristeza não seria mais tão evidente.

Observo o semblante das outras pessoas ao nosso redor no ponto de ônibus e imagino que cada uma delas talvez tenha suas próprias tristezas, mesmo que elas não façam brotar de seus olhos uma lágrima que seja. E por que não choram também? Por que insistem em esperar seus respectivos ônibus, debaixo desse sol de verão, que as nuvens brancas no céu não conseguem encobrir?

Percebo que errados, nessa história, estão justamente aqueles que não choram. Aqueles cujos sapatos apertam os pés, espremem calos, sufocam os dedos. Cujo cansaço pesa sobre seus ombros fracos. Aqueles que se conformam por não enxergar o horizonte, obstruído pelos prédios que se aglomeram até o infinito – ou pelo menos até onde a visão humana consegue alcançar.

Eles não choram, talvez, porque sintam vergonha, ou porque não queiram demonstrar tal desconsolo aos olhos da multidão. É provável até que não chorem por estarem acostumados ao sofrimento do dia-a-dia. Assim, não deixam escorrer uma única lágrima. Esse poderia ser até mesmo o caso da menina que me chama a atenção neste momento - surpreendida por uma lágrima que saiu do seu controle, mas que daqui a pouco secará para sempre, logo após cair no chão.


Mas antes que eu possa imaginar qualquer outra possibilidade, ou mesmo hesitar mais uma vez sobre a chance de consolá-la, um ônibus encosta junto ao ponto e ela embarca. Não tenho mais como saber, ao menos, se ela continua chorando, ou se outra lágrima começa a brotar de algum de seus olhos. A moça desaparece para sempre, pois, em uma cidade grande como São Paulo, é bem provável que eu nunca mais a veja.