ironia, ainda que tardia

Saturday, May 21, 2011

Tenho um coração insustentável
Talvez a pior parte de mim
Que ainda insiste em bater
Enquanto eu sigo apanhando
Das lembranças que tenho de você
Mas que não deveria guardar,
Nem deveria mais querer,
Mas que ainda quero pois
Foi a única que coisa que restou
Do que nós já fomos um dia,
Se é que fomos alguma coisa,
Já que era meu coração insustentável
Contra a insustentável leveza do seu ser
Que escapou de mim
E que já não mais posso ver.

Thursday, October 22, 2009

Insídia

Ouço uma música sinuosa
Entrar pelos meus ouvidos,
Invadir a carne do meu corpo
E roubar os meus sentidos.

Ouço um som lascívo
Erigir debaixo da sua pele
Em movimentos tortuosos,
Lancinantes de veneno.

Ouço versos de pura insídia,
Sinto longe a sua perfídia,
A perversidade de outrora
Contra meu refrão apaixonado.

Por trás de cada sedução
Esconde-se uma espécie de ardil,
Armadilha em forma de música,
Canção sinuosa do seu corpo.

Liturgia

Minha liturgia do pecado
Não permite contrição,
Já não me arrependo mais,
Nem imploro seu perdão.
Minha prece é letra morta,
Não me serve de oração.

Meu pecado é insistir
No erro de continuar errado,
De seguir pecando,
De ainda ser pecado
E passear danado
Em meio a tanta danação.

Mas atire a primeira pedra
Quem não tem pecado,
E que atire as próximas
Aqueles que, como eu,
Já não têm perdão:
O pecado é nossa religião.

Desfio um rosário de ofensas,
Emendo contas nessa novena,
Desfio palavrões na cantilena,
Faço diabos com sua confissão,
Troco a sua penitência
Pela minha satisfação.

Eu digo o santo nome em vão,
Eu mato, eu roubo, traio,
Desafio a sua santidade
Em troca do meu desatino,
Em troca do último perdão de
Deus no dia do Juízo Final.

Verbo conjugado


Sou como um verbo conjugado
Na primeira pessoa do singular,
Sou sujeito sem predicados,
Sou a palavra em meu lugar.

Já fui o particípio passado
De um verbo que se chama amor,
Sou agora o pretérito imperfeito
De uma palavra que ainda dói.

Sou o verbo intransitivo,
Sem complemento nem rodeios,
Também já fui frase sem sujeito,
Mas hoje me conjugo sem receio.

A palavra que preside o pensamento
Não é a mesma que comanda os atos,
Não respeita a concordância,
Ignora as regras de regência verbal.

A palavra que me leva à loucura
É a mesma que conduz ao caos.

Tuesday, October 20, 2009

Morri na praia dos seus olhos
Enquanto seus cabelos se espraiavam
Na minha imaginação inocente
E tornavam minha saudade mais aguda.

Entre nós sobrou um livro
Escrito com as palavras que restaram
Nas entrelinhas do que não dissemos
E dos segredos que insistimos em guardar.

Parece até que não nadei suficiente
Para alcançar no seu semblante
O sorriso das primeiras horas da manhã
Quando seus olhos amanheciam em mim.

A água começa a alcançar os pés,
Que agora se afogam na areia.
E enquanto eu me lanço ao mar,
A maré engole as minhas pernas.

Não falta muito para que o farol adiante
Sirva apenas para velar o meu sono
Quando meu corpo se perder para sempre
Nas fossas abissais do mar a dentro.

Mas, se me serve de consolo,
Minha alma talvez se liberte
Entre uma ou outra onda
E chegue até a praia em forma de espuma,
Preenchendo buracos na areia,
Sem derrubar castelos de criança
Quando o dia enfim amanhecer.

Deus observa à espreita
Meus descaminhos
Enquanto eu faço o diabo
Para me perder.

Lança os olhos
Em forma de estrelas
Mas não me ajuda
A sair desse labirinto.

Sua vigília, na verdade,
Pouco importa,
Eu que saia sozinho
E o diabo que me carregue.

Tuesday, June 16, 2009

Serelepe


O trombadinha atravessou a avenida na faixa de pedestres, todo serelepe, com as mãos prestes a mais um assalto. Parecia um saci sem cachimbo na boca ou perna amputada. Tinha apenas um cachecol vermelho para proteger o pescoço do frio daquela manhã de terça-feira, uma roupa suja no corpo e um sorriso na cara como se seu ilícito fosse, na verdade, uma dádiva para o assaltado.

Acompanhei tudo pelo para-brisas do carro, parado no farol a poucos metros da cena. O saci se aproximou de um táxi e interpelou o taxista com uma risada e um chiste antes de mostrar o canivete que guardava sob o elástico de uma calça de moletom desbotada. Pediu toda a féria que o motorista acumulara entre o final da madrugada e o início da manhã.

O taxista, por um momento, hesitou em dar o dinheiro, com a esperança de que o farol verde pudesse salvá-lo, assim como a coragem de dar um cavalo de pau com o carro e deixar o trombadinha falando sozinho. Mas o saci talvez tivesse dons que só conhecíamos até então nas histórias que nossas avós contavam e parecia até controlar as fases do semáforo, como um guarda da CET.

Cientes ou não do que ocorria a poucos metros de seus respectivos narizes, os outros motoristas buzinavam, mais em protesto pela demora do farol do que pelo cu doce do taxista ou pela insolência do meliante. Eu, ao contrário dos outros, observava o assalto com toda a paciência e a primeira marcha engatada (para o caso de alguma emergência). Torcia para que o bandido se desse bem.

Eu tinha acordado de ovo virado e queria que o resto do mundo se fodesse – e isso incluía o taxista que eu sequer conhecia. Além disso, a bem-aventurança do assalto seria uma vitória do trombadinha em sua causa: roubar dos outros em beneficio próprio, sem distinção de raça, credo, sexo ou filiação política. E sempre admirei esse tipo de engajamento.

Tive dó do taxista por alguns instantes, não vou negar, pela hipótese de perder tanto dinheiro num estalar de dedos, mas logo me conformei e percebi que essas coisas fazem parte da vida e que eu poderia ter dado a falta de sorte de estar em seu lugar de vítima. Bastava ter parado o carro um pouco mais à frente, na primeira fileira depois da faixa de pedestres.

A hesitação do taxista, por sua vez, poderia ter feito o saci meter os pés pelas mãos e cumprir a ameaça que existia na lâmina do canivete. Em uma situação comum, a polícia poderia chegar a qualquer momento para interromper o crime e colocar o meliante como um bicho no camburão. Mas apesar de corriqueira, aquela não era uma situação comum. O trombadinha parecia deter o tempo com um feitiço.

E como num passe de mágica, o taxista enfim resolveu se desfazer da grana. Tirou um bolo de dinheiro não se sabe de onde e o entregou ao trombadinha enquanto os carros da avenida transversal insistiam em passar de forma ininterrupta à sua frente. Ávido diante daquele tesouro, em notas gordas, médias e magras, o saci abriu um leque com as cédulas em suas mãos céleres, com dotes de crupiê.

Ao completar o assalto, o trombadinha voltou a correr no sentido oposto de onde viera e se escafedeu em alguma rua por dentro do bairro. O taxista respirou fundo com um sentimento de redenção por sair vivo, o farol abriu e ele acelerou em busca de outros passageiros que o ajudassem a, pelo menos, diminuir o prejuízo com o roubo. E eu continuei o caminho para o trabalho, enfrentando o mau humor e a barbeiragem alheia.

Monday, June 15, 2009

Benigna


A água do lago parece coberta por uma lâmina de gelo. O frio de inverno está lá, apesar do dia de sol que preenche a paisagem com uma claridade benigna. A montanha ao fundo esconde o horizonte de nossos olhos e testemunha do alto as poucas e brancas nuvens que teimam cruzar o céu azul.

Há um pouco de ironia nesse dia perfeito para um cartão-postal. Quem o visse em uma foto talvez nem desconfiasse do frio abaixo de zero. O vento, no entanto, corta as maçãs do rosto de Alice, única parte desprotegida de seu corpo quase todo agasalhado. Mas ela sorri, faz pose para a foto com as mãos escondidas nos bolsos de uma jaqueta de náilon, cor bege e detalhes em pele sintética na cor marrom.

Neve, só num ponto distante no cume da montanha. Lembra até uma ponta de marshmallow num doce de chocolate. Apesar do frio, o verde da vegetação ao redor ainda resiste e ajuda a dar mais colorido ao cenário. O sorriso de Alice na pose para a foto, diante de tudo aquilo, revela um encanto quase infantil.

Seus olhos azuis até se confundem com a própria paisagem. Eles se destacam em seu rosto branco, abaixo das sobrancelhas claras e dos cabelos castanhos, lisos, devidamente protegidos dentro do capuz da jaqueta. Seu semblante se alterna entre alguns sorrisos de menina e outras feições simpáticas.

Alice viajou mil quilômetros para passar suas férias longe de casa, do trabalho e do trânsito da capital. Embarcou sozinha na manhã de uma segunda-feira, com bagagem suficiente para apenas uma semana fora. Levou também um livro para ler no avião, algumas músicas no iPod e um diário para registrar fatos e sensações do período em que estaria em outro lugar.

Antes de sair, deixou um bilhete para a amante, debaixo de um imã na porta da geladeira. Havia escrito algumas recomendações para o período em que estivesse ausente, instruções para o pagamento das contas que chegariam naquela semana e declarações de amor em frases tão sutis como prosaicas.

Soledad ficou surpresa ao acordar sozinha na cama. Esperava encontrar a boca de Alice na altura de seu ombro, assim como a respiração morna e o cheiro de xampu e condicionador que se somavam e persistiam sempre nos cabelos dela. Mas Alice não estava mais lá. Em seu lugar, apenas a temperatura que seu corpo deixara sobre o lençol durante as horas de sono. Sentiu falta também de um afago, de um beijo...

Levantou-se então e não deu mais do que dois passos até o banheiro do apartamento. Soledad jogou uma água gelada no rosto, escovou os dentes com pressa e dirigiu-se à cozinha, onde planejava roubar um iogurte de Alice para comê-lo de colher enquanto assistisse ao primeiro telejornal da tevê.

Foi então que se deu conta do bilhete. Imaginou, inicialmente, que se tratava de uma despedida, um rompimento sem muita coragem para dizer certas coisas na cara. Sempre temeu os humores de Alice, que se alternavam inúmeras vezes ao longo de um mesmo dia.

Ao perceber que não era nada disso, que se tratava apenas de mais uma viagem, ficou mais tranquila, abriu um saco de torradas e ligou a televisão da sala. À noite, quando voltasse do trabalho e ligasse o computador em casa, receberia a foto de Alice por e-mail. E talvez sequer se perguntasse quem seria, afinal, o autor daquele registro.

Friday, May 22, 2009

Sob o domínio de Thânatos

Thursday, April 30, 2009

Sandices

Daniel Pereira Frazão

Tenho predisposição à loucura,
Sou aberto ao desatino,
A insanidade
É meu estado de espírito.
Dou asas à imaginação
E ouvidos a sandices,
Às maluquices
Que outros dizem,
A tudo o que penso
E mais um pouco.
Estou louco da vida,
Fora de esquadro.
Quanto mais eu vivo
Mais eu enlouqueço,
Mais dinheiro eu rasgo,
Mais camas incendeio.
Solto fogo pelas ventas,
Transpiro,
Inspiro a tua loucura.
Fico pinel
E piro cada dia mais,
Arrebento a boca do balão.

Sangue de Baco

Daniel Pereira Frazão

Um filete de sangue
Escorre no canto da boca:
Romanée-Conti.
O lábio toca,
A boca sorve
O conteúdo da taça:
Malbec.
Há um certo prazer,
Uma embriaguez incerta:
Pinot-Noir.
O sangue agora
Mancha nossos trajes sumários,
Dá um tom de bordeaux
À nossa lascívia:
Shiraz.
Meu sangue é da melhor safra,
Azul,
Talvez Merlot,
É seco,
Frutado,
De aroma agradável:
Cabernet Sauvignon.