ironia, ainda que tardia

Wednesday, August 30, 2006

O que não tem remédio

Daniel Soleil Noir

O que não tem remédio, remediado está – esta era sua frase preferida quando vislumbrava apenas os estertores da própria vida. Repetia a sentença pelo menos quatro vezes ao dia enquanto ainda estava no hospital, de seis em seis horas, impaciente sobre o leito em que convalescia.

E mais por impaciência que por qualquer outra razão, resolveu deixar o hospital mesmo sabendo que estava prestes a morrer. Queria morrer em paz, no quarto de sempre, na sede da velha fazenda. Precisava pousar levemente as mãos sobre a floreira de azáleas, ainda sob a janela, e conferir de perto o viço das plantações que seguiam até a linha do horizonte.

Não tinha outros planos para depois que fenecesse, enfim. Até porque a solidão não permitia que ele os comunicasse a ninguém.

Chegou à casa sentado sobre uma cadeira de rodas, empurrada por um enfermeiro que viajara com ele. O sol do meio-dia ofuscava-lhe a vista, o que fazia com que perdesse alguns detalhes da paisagem. Porém, os odores permaneciam os mesmos desde a infância, nos tempos em que não passava de um moleque pronto para matar os pintos no galinheiro com a sola do sapato.

O enfermeiro chegou a ver, de repente, surgir um sorriso no canto dos lábios do ancião e julgou que alguém pudesse estar à espera de ambos. Mas nenhuma alma se apresentou junto à soleira enquanto os dois entravam. Seria apenas o velho naquela casa, pelo menos enquanto ainda resistisse – o que talvez não levasse mais do que alguns dias. E ao se acomodar em um dos sofás da sala, o velho secou o suor de sua pele ressecada e brincou com o enfermeiro:

- Veja só o quanto estou mais corado!

O jovem concordou com bom-humor, mas não pôde esconder uma boa dose de piedade quando seu próprio olhar baixou por um momento. Fingindo ignorar aquele ar, o velho se levantou com dificuldade rumo aos primeiros passos em sua casa. Olhou em volta e conferiu o estado dos móveis e da arrumação.

Nenhum dos empregados sabia a respeito de seu retorno. Por isso, acabou se surpreendendo ao encontrar todas as coisas em sua devida ordem. Não havia sequer a mínima película de poeira sobre as estantes, as prateleiras, sobre os braços dos sofás. Até o cheiro da cera para fazer brilhar o chão era perceptível ainda - aquele piso de madeira rústica, escura, talhada como parecia talhada a própria face do ancião, recortada por veios e rugas próprios da idade.

Rastejando os pés, calçados com um par de sandálias franciscanas, o velho pediu que fosse deixado a sós com a modorra da cozinha, onde todas as panelas estavam devidamente guardadas, assim também como todos os pratos, talheres e utensílios, nos armários que talvez fossem tão velhos quanto ele.

Surpreendeu-se, porém, com uma caneca de vinho deixada ao centro da mesa. Arregalou então os olhos azuis para enxergá-la melhor. E se deu conta totalmente do que realmente se tratava. Puxou os lábios enrugados, notando o quanto a boca estava ressecada e o quanto ela vinha se ressecando ao longo da doença.

Tomou a caneca entre as mãos trêmulas, mais por ansiedade do que pela própria fraqueza. E engoliu todo o seu conteúdo, como se aquele regalo tivesse sido deixado especialmente para ele. Foi assim que ganhou forças para subir as escadas e se dirigir aos seus aposentos, no segundo andar da casa.

Lá, empurrou as venezianas e enxergou pela última vez a paisagem com que sonhava quando ainda estava no hospital. E por um segundo se sentiu curado, o suficiente para que pudesse dizer adeus àquela sua vida.

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