ironia, ainda que tardia

Tuesday, January 17, 2006

Mulher

Daniel Soleil Noir

E qual não foi a surpresa da família toda ao perceber que eu havia nascido nua. Uma aberração que acabara de deixar o útero da mãe sem roupa alguma. Sem adereços a me enfeitar a silhueta recém-nascida. Os próprios olhos da parteira já me encaravam com desconfiança logo que minha cabeça saiu. Imagine então o espanto dos demais que também acompanhavam o parto. Não viam uma criança indefesa chegando ao mundo, desprotegida justamente pelo fato de estar nua. O que enxergavam era uma ofensa acintosa aos seus costumes pouco habituados a esse tipo de coisa.

Eu nasci nua e, como não poderia deixar de ser, cresci assim. A intenção da família, no entanto, era a de me prender até os quinze anos, para só depois disso decidir o que fazer comigo. Alguns cogitavam me mandar para o sítio de uma tia avó distante. Outros diziam que eu deveria ser levada para um colégio de freiras, onde além de me colocar roupas, as irmãs poderiam ajudar a assegurar também a salvação da minha alma. Havia, inclusive, quem dissesse à boca pequena que o meu lugar deveria ser um hospício, como se a minha nudez tivesse também alguma coisa de loucura.

Tal indecisão fez com que eu passasse os primeiros anos de minha infância trancada num quarto, onde recebia apenas a visita das mulheres da casa. Elas me olhavam até com certa compaixão, sendo que umas e outras não escondiam, por outro lado, uma dose de hostilidade a cada vez que me viam. Não haviam nascido nuas como eu e até se faziam superiores a mim de um certo modo.

Mas no meu aniversário de quinze anos, minha mãe, minhas tias, minhas primas e minhas avós chegaram a preparar uma festa menos simplória para compensar a falta de um baile de debutante. Lembro de ver todas elas entrando de surpresa em meu quarto, enquanto eu despia algumas das bonecas que já ganhara de algumas vizinhas no dia anterior. Elas entraram todas vestidas, mais arrumadas do que no dia a dia. Traziam um bolo bonito, com uma daquelas velas com efeitos especiais que mais pareciam uma gama de fogos de artifício estourando no céu.

E bastou um breve momento para que eu percebesse que todas aquelas mulheres continuavam exatamente as mesmas desde o dia em que nasci. Elas se vestiam praticamente da mesma maneira, embora se esforçassem para se adequar à moda vigente. Mesmo as minhas primas, que cresceram comigo, trajavam roupas que impediam de se constatar qualquer mudança mais evidente, apesar das feições que as deixavam cada vez mais parecidas com suas respectivas mães.

Eu, ao contrário, mudei durante esse período. Meus seios, por exemplo, cresceram de repente, o que acabei percebendo com a ajuda do espelho da penteadeira e com o auxílio do colchão da minha cama, nas noites em que dormia de bruços. Para dizer a verdade, naquela época eu ainda não sabia o que aquilo significava exatamente. Talvez fosse apenas mais um aspecto da minha anormalidade, a qual eu já aceitava sem maiores questionamentos, de tanto as pessoas insistirem nisso. Depois, notei que vinha brotando uma fina penugem nas proximidades do meu sexo, pêlos que a cada dia se adensavam mais e mais, até que tomaram conta de mim.

O problema é que eu não fazia a mínima idéia se aquele fenômeno se repetia ou não nas outras fêmeas da espécie. As partes do meu corpo que mais me intrigavam não eram visíveis no corpo das mulheres da família. Só que ao invés de me inibir, o fato de me dar conta disso atiçou minha curiosidade acerca de um mundo lá fora que eu sequer conhecia. Deveriam existir outras pessoas e, no meio desse universo, deveria existir um bom número de mulheres que, como eu, também haviam nascido nuas, com quem talvez eu pudesse aprender até a conviver melhor com essa minha nudez.

Então, no dia seguinte à festa, enquanto dormiam no restante da casa, eu saí pela porta e resolvi fugir. O sereno da noite se deitava sobre minha pele branca, mas o frio nem me importava. Enquanto corria pela beira da estrada rumo à cidade, eu era assaltada por uma euforia nunca antes experimentada. Era um gozo de liberdade que eu jamais havia sentido. Sentimento que me fazia correr ainda mais, estampando no semblante um orgulho enorme por estar nua, de ser nua, de ter nascido assim e conseguido sobreviver até aquele momento sem precisar me vestir.

Aos poucos, a aurora foi tomando conta do horizonte à minha frente. E pela primeira vez na vida minha pele foi tomando contato com a luz do sol. Aquele mesmo astro que eu só enxergava através da janela semicerrada do meu quarto. Ele surgia atrás das encostas dos morros e, apesar da distância, dourava o meu corpo, os meus cabelos, a minha derme naturalmente exposta. Ele trouxe um calor diferente para um corpo que se acostumara com a umidade das paredes em volta, com a ausência de um abraço que nunca ninguém ousara me oferecer até aquele amanhecer.