ironia, ainda que tardia

Tuesday, June 16, 2009

Serelepe


O trombadinha atravessou a avenida na faixa de pedestres, todo serelepe, com as mãos prestes a mais um assalto. Parecia um saci sem cachimbo na boca ou perna amputada. Tinha apenas um cachecol vermelho para proteger o pescoço do frio daquela manhã de terça-feira, uma roupa suja no corpo e um sorriso na cara como se seu ilícito fosse, na verdade, uma dádiva para o assaltado.

Acompanhei tudo pelo para-brisas do carro, parado no farol a poucos metros da cena. O saci se aproximou de um táxi e interpelou o taxista com uma risada e um chiste antes de mostrar o canivete que guardava sob o elástico de uma calça de moletom desbotada. Pediu toda a féria que o motorista acumulara entre o final da madrugada e o início da manhã.

O taxista, por um momento, hesitou em dar o dinheiro, com a esperança de que o farol verde pudesse salvá-lo, assim como a coragem de dar um cavalo de pau com o carro e deixar o trombadinha falando sozinho. Mas o saci talvez tivesse dons que só conhecíamos até então nas histórias que nossas avós contavam e parecia até controlar as fases do semáforo, como um guarda da CET.

Cientes ou não do que ocorria a poucos metros de seus respectivos narizes, os outros motoristas buzinavam, mais em protesto pela demora do farol do que pelo cu doce do taxista ou pela insolência do meliante. Eu, ao contrário dos outros, observava o assalto com toda a paciência e a primeira marcha engatada (para o caso de alguma emergência). Torcia para que o bandido se desse bem.

Eu tinha acordado de ovo virado e queria que o resto do mundo se fodesse – e isso incluía o taxista que eu sequer conhecia. Além disso, a bem-aventurança do assalto seria uma vitória do trombadinha em sua causa: roubar dos outros em beneficio próprio, sem distinção de raça, credo, sexo ou filiação política. E sempre admirei esse tipo de engajamento.

Tive dó do taxista por alguns instantes, não vou negar, pela hipótese de perder tanto dinheiro num estalar de dedos, mas logo me conformei e percebi que essas coisas fazem parte da vida e que eu poderia ter dado a falta de sorte de estar em seu lugar de vítima. Bastava ter parado o carro um pouco mais à frente, na primeira fileira depois da faixa de pedestres.

A hesitação do taxista, por sua vez, poderia ter feito o saci meter os pés pelas mãos e cumprir a ameaça que existia na lâmina do canivete. Em uma situação comum, a polícia poderia chegar a qualquer momento para interromper o crime e colocar o meliante como um bicho no camburão. Mas apesar de corriqueira, aquela não era uma situação comum. O trombadinha parecia deter o tempo com um feitiço.

E como num passe de mágica, o taxista enfim resolveu se desfazer da grana. Tirou um bolo de dinheiro não se sabe de onde e o entregou ao trombadinha enquanto os carros da avenida transversal insistiam em passar de forma ininterrupta à sua frente. Ávido diante daquele tesouro, em notas gordas, médias e magras, o saci abriu um leque com as cédulas em suas mãos céleres, com dotes de crupiê.

Ao completar o assalto, o trombadinha voltou a correr no sentido oposto de onde viera e se escafedeu em alguma rua por dentro do bairro. O taxista respirou fundo com um sentimento de redenção por sair vivo, o farol abriu e ele acelerou em busca de outros passageiros que o ajudassem a, pelo menos, diminuir o prejuízo com o roubo. E eu continuei o caminho para o trabalho, enfrentando o mau humor e a barbeiragem alheia.

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