ironia, ainda que tardia

Monday, January 29, 2007

Redivivo

Daniel Soleil

Ferido de morte, o general estampa na farda uma extensa mancha de sangue e segura nas mãos débeis um odre carregado de vinho tinto. Ele segue à procura de uma campa em que possa descansar em paz e usa as últimas forças de seu corpo exangue para o cumprimento dessa derradeira missão. Está morto e tem plena consciência disso. Mas precisa ainda encontrar um lugar que lhe abrigue a carcaça para o descanso eterno que Deus concede aos pecadores.

Ele continua andando, embora manque sobre aquele bucólico campo de grama verde e viva. Olha por sobre as sebes e enxerga ao longe as belas colinas pelas quais suas tropas haviam descido antes de tão malograda batalha. Talvez esteja nesse caminho de volta o local de sua última morada. E se entregaria ao júbilo completo por isso se não visse os corpos de seus soldados mortos enfileirados sobre o chão e sob o bico das aves de rapina que já se aglomeram ao redor.

Quando percebe que as suas poucas forças estão prestes a se esgotar, é no vinho que ele se socorre, espremendo o couro com força suficiente para que esganasse um bicho. Mas não há animal sequer que ele possa matar a esta altura. Precisa cumprir este desígnio. Tem que usufruir o direito de encontrar um sepulcro que lhe convenha, onde possa recostar sua carne e cerrar os olhos para todo o sempre. Aquele era um direito garantido pela alta patente que ele ainda ostenta pregada sobre o seu peito sem vida.

Existe a possibilidade de que encontre ali mesmo o seu último pedaço de chão. Basta andar mais alguns metros e em breve terminaria de apodrecer debaixo daquele sol a pino. Também pode voltar ao caminho antes empreendido por suas tropas e plantar seu cadáver em pleno território inimigo, de forma a atraiçoar o exército alheio mesmo depois de morto. Mas a terceira hipótese talvez não seja menos tentadora: subir novamente as colinas do passado e voltar para sua antiga casa, para os braços da família, que com demasiada tristeza depositaria seu corpo no terreno aos fundos da caserna.

Não raro o general se vê surpreendido pela imagem do ataque que ceifou sua vida. Na ocasião exata, ele mantinha os braços cruzados sobre o peito, enquanto assistia da retaguarda seu exército perecer diante dos rivais. Mesmo assim, permaneceu impassível por segundos eternos, sem perder a pose, ao passo que seus peões saíam do jogo e eram despejados mortos para fora do tabuleiro. Até que sentiu um tiro violar seu peito e interromper com um zunido ensurdecedor o ritmo das batidas de seu coração feito de pedra.

Não lhe restava o que fazer, senão cair e entornar seu sangue ainda quente em cima daquele solo fértil.

Bastaram alguns minutos para que um anjo nu, vestido de poesia, pousasse junto ao seu corpo de general. Sua tarefa era reanimar o cadáver do homem, concedendo-lhe mais alguns momentos e uma boa quantidade de vinho que lhe restituísse o sangue, ainda que por algumas poucas horas.

Ao recobrar a consciência, o general já sabia, por alguma espécie de milagre, qual seria a última missão que lhe cabia. E ergueu-se com arbítrio totalmente livre para que escolhesse o local do seu repouso final.

Apesar de contar com pelo menos três opções, o general ainda segue a sua marcha a esmo. Gira em falso em torno de si próprio, esperando que aquele céu azul não lhe sirva de mortalha, assim como este mesmo céu faz agora com os seus soldados. Inúmeras são as dúvidas que pairam em volta de sua cabeça ferida com um talho aberto após a queda. E o agravante, neste caso, é que talvez nem mesmo a sua morte possa ser tomada como uma certeza.

Eis que um vento súcio resolve soprar junto ao seu ouvido uma idéia de um oportunismo vil. Se quisesse, poderia driblar a morte e ir para onde desejasse, vivendo como melhor lhe aprouvesse. Não precisaria de nada - a não ser de mais vinho com que pudesse encher aquele odre, assim como suas artérias e veias esvaziadas. E o simples fato de cogitar uma mudança no seu destino já lhe provoca mais sede, fazendo com que volte a buscar sua verdade no vinho - o sangue de Cristo, que nele se transforma em vida, uma vida provisória, uma eternidade falsa que se prolonga, ainda que seja morte.

Seus olhos sobressaltados encontram então uma vereda aberta entre os mortos, uma passagem que pode levá-lo a uma lagoa protegida daquela mácula feita de sangue. Ele segue adiante e seus passos – desconjuntados, tortos, imprecisos - o levam para o que pode ser um último banho. Sua intenção, porém, é outra. Precisa se livrar do sangue que impregna a sua farda, precisa se livrar daquele cheiro mórbido que toma conta do seu corpo. Pois se realmente quer seguir os conselhos do diabo, e permanecer neste mundo apesar da própria morte, não pode deixar nenhuma pista de que, na verdade, esteja morto.

Mas no momento em que espera ver o reflexo da sua própria imagem na superfície das águas claras, o general não se reconhece. Ele vê algo que não se define, que não corresponde à realidade. Mesmo que esteja abatido e modificado após o tiro que lhe arrombara o peito, seu semblante se mantém e ninguém mais desavisado seria capaz de lhe reconhecer a ausência de vida.

Enganado pelas águas, é neste momento em que a morte lhe tira o pouco de vaidade que lhe restara. Sem ela, já não tem motivos para enganar seu destino. Está destituído da única coisa que fazia com que se mantivesse vivo e com o comando impávido sobre suas tropas nas palmas de suas mãos. Só lhe resta resignar-se à finita busca de seu próprio túmulo.

E sem ânimo para continuar procurando, o general se atira contra a lagoa e submerge no ventre daquelas terras, até morrer definitivamente na esperança de renascer um dia em uma vida completamente nova.

Friday, January 26, 2007

O Sol que Nunca se Põe

Daniel Soleil

A luz do sol, ao sol se pôr, parece mais forte do que no restante do dia, mas só parece. Apenas ofusca os olhos de quem olha para oeste e doura a fachada dos edifícios que despontam na paisagem da cidade. No verão, quando anoitece mais tarde, é que torna-se possível se deter com mais calma nesse instante, observando-se o sol se pôr enquanto a claridade se desloca, dilata as pupilas de quem vê e faz com que o restante das coisas perca ainda mais importância.

Era nesse momento então que nós dois nos despedíamos. Ela estampando um sorriso tão claro como o próprio sol, enquanto eu dissimulava uma certa frustração, embora houvesse a certeza de que voltaríamos a nos ver no dia seguinte. Antes, porém, a noite cairia aos poucos, até que o céu, coberto de nuvens e sem estrelas, pudesse ser confundido com uma espécie de desesperança. Uma desesperança ainda que passageira, pois o dia levaria o tempo necessário para que logo amanhecesse, como em todos os outros dias.

Quando eu chegava ao apartamento, ainda podia ver a forma como o sol invadia a sala, o modo como a sua luz se deitava sobre o piso, sobre os móveis e se recostava na parede do lado oposto. Mas aquele espetáculo durava pouco e não tardaria a se concluir, e tudo voltaria a ser sombra, como sempre acontecia. Bastava um único minuto de distração e o instante se esvaía completamente. Era efêmero, ainda que ao mesmo tempo fosse tão cotidiano. E o fato de ser assim tão corriqueiro era o que o tornava passível de ser esquecido logo a seguir.

Mas desde que a vi pela primeira vez passei a querer cada vez menos que o sol se despedisse assim. Comecei a desejar que ele se detivesse por alguns minutos mais e não fosse embora sem que antes eu tivesse a oportunidade de abraçá-la ou mesmo contemplar toda a quantidade de ternura que provinha daqueles seus olhos castanhos. Nossa rotina, no entanto, abreviava as minhas chances e nossos momentos pareciam ínfimos diante do que poderiam ser se tivéssemos um pouquinho mais de tempo para nós dois, para o que sentíamos dentro de nós.

Até quando me aproximava de beijá-la, o tempo era mais rápido do que eu e roubava de mim o direito àquele beijo. Era ele o responsável por tornar inútil a fruição que eu dedicava àqueles olhos, o esforço em vão de querer decifrar os desejos que ainda se escondiam no fundo do peito dela. E mesmo o ensejo para um convite também se perdia, umas vezes por causa da falta de coragem, noutras porque ela se virava de costas, pronta para que tomasse a pé o caminho de casa, mantendo no rosto o sorriso estampado que lhe revelava o espírito.

Se ao menos ela não se importasse com o fato de que o sol se punha, poderíamos continuar juntos, plantados naquela esquina, enquanto o dia fosse perdendo a sua luz e a noite fosse chegando de mansinho. Afinal, quem precisaria do sol depois de ter nascido com a dádiva de poder emitir luz própria, trazendo no rosto uma luminescência digna de todo o fascínio que eu lhe prestava? Mas ela talvez não soubesse disso, ou fingia não saber, e voltava a se despedir com um beijo jogado no ar, um piscar de olhos e um breve aceno de mão.

Teria de haver algum lugar em que o dia não terminasse como todos os dias, e o sol não se escondesse como que para não testemunhar a realização daquele meu sonho. Uma outra cidade, um outro país, um outro mundo, quem sabe. Podia ser um filme, a página de um livro, o anúncio de uma revista. O que quer que fosse já seria suficiente para alimentar em mim a esperança de que o meu amor por ela não seria interrompido pelo término das horas que o destino nos concedia para que ficássemos juntos apenas ao longo do dia.

E de repente percebi que a melhor receita estivesse talvez na poesia que vinha de sua presença. Era preciso transferi-la para uma folha de papel, com a finalidade única de perpetuá-la, perpetuando também a sua presença junto a mim. E assim poderia amá-la mesmo quando ela se recolhesse, recorrendo à alegria que sua lembrança me despertava, ao som da sua voz que continuava ressoando nas paredes dos meus ouvidos, como música tocando na minha cabeça.

E na proporção que eu ia costurando os primeiros versos nas folhas do antigo caderno de linhas tortas, tendo em punho a ponta de uma caneta de tinta azul, ela ia ficando cada vez mais nítida, como se surgisse na forma de um desenho ou como se fosse uma fotografia revelando-se aos poucos na sala escura. Terminadas as estrofes, a respectiva leitura ganhava um valor bem próximo ao da sua companhia, e as palavras que eu escrevia se equivaliam a ela em lirismo.

No dia seguinte, novamente quando já estávamos para nos despedir, ousei abraçá-la com força, colocando-a bem perto do meu peito.

- Você é o sol que nunca se põe. Tem o dom da alegria infinita e um sorriso que nunca se acaba.

A partir daí, ainda que cada um tivesse seguido o seu rumo, nós dois sabíamos, na verdade, que aquele dia nunca mais terminaria.

Tuesday, January 16, 2007

Amor de Samba

Daniel Soleil

Quem é essa mulher feita de samba, descendo a ladeira em pleno sábado de Carnaval? Vestida com uma alegria insuspeita e iluminada pela luminescência do próprio semblante? Quem é a loira que insiste nesse gingado, nesse balanço com os pés descalços tocando leves a superfície dos paralelepípedos que se enfileiram ao longo do leito da rua? Quem é essa cabrocha que não se cansa de ser feliz? Eu precisava saber. Eu tinha que interromper os seus passos, me imbuir de toda coragem e perguntar o seu nome de uma vez por todas.

Mas enquanto ela gingava, e eu olhava em sua direção, a essência de sua alma já flertava com a ponta do meu olfato, um feitiço sobre o qual Deus só lhe concedia o direito durante aqueles dias de sol. Ela então me olhou de banda, fingindo alguma desconfiança e escondendo um breve sorriso no canto dos lábios. E não se fez de rogada ao me fitar mais acintosa, me chamando sem medo com o dedo indicador, com o sorriso desfeito e a boca no formato de um convite.

Deixei o posto que guardava junto a um poste de luz e virei mais um entre os passistas que dançavam na frente das casas. E foi no samba que eu também me aproximei dela. Arrastando os pés com a alegria sacudindo as cadeiras e a bacante flutuando charmosa, leve e vistosa, vindo num trote célere para cima de mim. Quem é ela, meu Deus do céu? Eu precisava saber. Hesitar talvez fosse fatal. E poderia fazer com que ela sumisse no meio daquele turbilhão de gente, terminando nos braços de outro folião um pouco mais esperto, ou que pelo menos a soubesse levar com graça, só no sapatinho.

E eu a dominei primeiro pelos quadris. Era possível sentir-lhe o samba sambar por baixo da pele, mesmo quando ela estava parada. E logo que eu me dei conta de que ela estava assim tão perto, seu fôlego se lançou de encontro ao meu e ficamos sem ar durante aquele momento eterno, que guardaríamos em nós para o resto de nossas vidas. Era um beijo etéreo aquele beijo, feito com a mesma matéria-prima a partir da qual nascem os sonhos. Era o teorema da felicidade transformando nossa teoria em prática, escrevendo em poesia o enredo do nosso samba-canção.

Havia um calor brotando dos nossos poros, mas nada que fosse insidioso o suficiente e que nos inflamasse a caminho da avenida. Tudo não passava de uma fantasia elegante - embora já começasse a ser também uma espécie de amor que latejava dentro de nós e que aumentava o ritmo dos nossos corações batendo em uníssono. E de mãos dadas seguimos pelas ruas cheias, trocando novos beijos a cada esquina, trocando abraços sob os mastros das bandeiras, singrando becos e outras ruas feitas de festa.

Era uma infinita benção que o nosso idílio fosse acompanhado pelos instrumentos daquela folia toda. E que mesmo o choro da cuíca fizesse a alegria dos passistas. As palmas de suas mãos esquentavam os tamborins e os passos das mulatas marcavam a cadência da avenida e perpetuavam na pista a linhagem dos bambas que desciam dos morros vestidos na melhor estampa, que a respectiva nobreza lhes conferia antes mesmo de nascer.

A hora ia passando e o sol, que antes pairava o seu sorriso sobre nossas cabeças, ia se escondendo devagar nas costas da favela. Em breve estaríamos por conta somente das estrelas que despontassem no céu, por conta do destino que o céu se atrevesse a escrever à nossa revelia. Mas era possível notar a luz dessas mesmas estrelas rivalizar com o luxo dos vestidos de cetim, das purpurinas, dos enfeites, das lantejoulas, das plumas e dos paetês. Rivalizar com os brios do ritmista e com o esplendor da paixão calada que até então se insinuava apenas nos olhares entre mestre-sala e porta-bandeira.

E nós fazíamos pose na passarela, gingando ínfimos ao lado das alegorias, vendo os destaques levitarem sobre os carros coloridos, sambando com os pés mais próximos das nuvens. Nós mesmos talvez fôssemos semideuses, renascidos na fina flor daquele samba: os corpos seminus, a felicidade indisfarçada, a brancura na tez, mas a alma de mulatos. E nossas bocas entreabertas se precipitavam em novos beijos, em novos toques de lascívia que fluíam conosco ao longo do desfile. Íamos tomando partido um do outro, sob os olhares que nos testemunhavam a partir dos camarotes apinhados de turistas.

Maravilhosos também eram os momentos em que ela ria, acendendo no rosto um sorriso infinito, uma alegria que transbordava a ponto de fazê-la chorar de júbilo, imersa num contentamento sem fim. E só nesse instante eu abdicava do direito de beijá-la e evitava o erro de interrompê-la na hora em que ela mais parecia um anjo, quando mais revelava a criança escondida no fundo de si. E sorria através dos olhos, que resplandeciam ao me contemplar de perto, ao sentir minha voz grave chamar-lhe com amor ao pé de um dos seus ouvidos.

Se era amor, foi paixão à primeira vista. Era amor de samba. Indescritível como o sentimento de quem ama. E que nasceu tão de repente, encontrando, sem mais por quê, algum abrigo bem cá no fundo do meu peito.

Só que fiquei um bom tempo sem vê-la depois de quarta-feira. Subiu o pano e ela sumiu quando acabou a brincadeira, quando a folia se recolheu para o fundo das casas e deixou baldia a extensão da avenida. O que era festa agora é desencanto. O que era sonho hoje é pesadelo. Um terrível receio de jamais vê-la, um medo triste de ter que esquecê-la. Pois eu não me contentaria com a hipótese de guardá-la apenas na memória, recordando a nossa alegria nas praças, quando na verdade eu queria tê-la de novo entre os meus braços.

Eu tinha que procurá-la, mesmo com a desesperança e a chance de morrer na praia - embora não soubesse direito por onde começaria a minha busca.


E a encontrei de novo onde menos esperava (na minha vida), com os pés se equilibrando no salto, o traje indefectível, o mesmo sonho brilhando nos olhos. Mas a mais sensível diferença estava na cor de seus cabelos, que haviam trocado a claridade de outrora por um tom mais escuro, barroco. Passara a ser morena, apesar de ainda manter as suas raízes loiras...

Monday, January 15, 2007

O pijama aberto à Família

Daniel Soleil

* Que Chico Buarque me perdoe a heresia


Amanheceu um dia claro, um dia em que os raios de sol entravam pela janela do quarto sem pedir licença. Amanheceu um tanto assim despudorada, com o pijama aberto à família. E fui o primeiro a percebê-la entregue, demasiadamente alegre, jogada sobre os lençóis da cama, cansada por dormir demais.

Juro que não quis entrar no quarto dela. Pelo menos não fui eu quem virou a maçaneta. O vento fez com que a porta se abrisse sozinha. Talvez tivesse sido um passe de mágica. Ela então me chamou ao me ver passar por entre a fresta. Hesitei a princípio, imaginando que não fosse comigo, até que ela me chamou pelo nome, pedindo que eu entrasse e fechasse a porta atrás de mim.

Segui exatamente o que ela havia pedido, sem deixar de notar, porém, toda a sua displicência sobre um dos leitos da antiga fazenda. Percebi os botões abertos na camisa do pijama e o pedaço da pele branca que seu colo desvelava àquela hora da manhã. E não usava mais nada. Apenas a camisa. O resto, suas pernas escondiam em movimentos lentos e insidiosos sobre o colchão.

Perguntei o que queria, antes que ela desse um sorriso malicioso e se levantasse da cama, vindo na minha direção. Clara sabia da minha timidez, sabia dos meus quinze anos, da minha recente puberdade. Por isso, parou na minha frente, com a boca entreaberta, os olhos semicerrados e a língua excessivamente vermelha lambendo os cantos de seus lábios carmesins.

Mas quando demonstrei a primeira reação, ao querer tocar-lhe os braços, ela se virou de costas e deu mais três passos em direção ao toucador. Queria arrumar os cabelos que estavam despenteados em forma de lascívia. Queria dar-lhes outro jeito, fingindo asseio e até alguma espécie de recato.

Enquanto isso, eu somente observava, quieto, calado, sem dizer qualquer coisa que pudesse acordar o resto da família. Haveria uma festa na hora do almoço e todos estavam prestes a acordar, para encerrar enfim os últimos preparativos. Até meus passos, com os pés descalços sobre o piso de madeira rústica, eram tíbios; ao contrário dos passos de Clara, calçados com uma sandália de pano.

Ao terminar de se pentear, ela pediu que eu me aproximasse, o que fiz, desta vez sem hesitar. E ao chegar mais perto, fitei o espelho com calma e encontrei, sem querer, os olhos azuis com que Clara também me fitava. Tive a idéia de repousar uma das mãos sobre o ombro dela, esboçando alguma outra reação que talvez a contentasse e que me conduzisse depois para o que ela quisesse.

Clara pediu, no entanto, que eu lhe desse um beijo demorado no pescoço. Ela fechou os olhos e jogou a cabeça para a esquerda para que eu pudesse chegar do outro lado. Minha respiração se sobressaltou a seguir, e respirei desse jeito por alguns instantes, até colar minha boca àquela pele macia. Ela confessou que meu fôlego lhe aquecia a derme e ajudava a acender alguma coisa dentro de seu corpo. E disse isso com as mãos sobrepostas junto ao ventre, embora eu ainda não imaginasse que aquele ventre já fosse em si uma fonte de calor.

Concluí o beijo que ela me encomendara e logo me pus em posição de sentido, certamente à espera do seu próximo pedido. Clara, por sua vez, ainda conferia o sabor dos próprios lábios, como se talvez saboreasse aquele meu gesto. À medida que esperava, tive tempo de observar a janela, as venezianas escancaradas, praticamente jogadas contra as paredes. Já a cortina de renda voava como se fosse um véu.

E foi naquele átimo de distração que ela me pegou de assalto e aproveitou sua chance de beijar minha boca. Não me reconheci ao tomar seus quadris entre minhas mãos seguras, segurando com força aquele corpo sinuoso, aquele corpo proibido – pois eu ainda duvidava que houvesse na família quem não considerasse o amor entre dois primos uma forma interdita de amor.

Senti uma chama brotar no fundo do peito quando ela me puxou pelo sexo para ainda mais perto de si. Eu não tinha mais como esconder aquele membro entre as minhas próprias pernas. E, para dizer a verdade, nem queria mais. O que interessava, mesmo sendo proibido, era desaparecer no meio do ventre de Clara, como se ambos tivéssemos talento para um milagre.

Longos minutos se passaram e nossos corpos atados giravam em falso sobre o piso da alcova. Até que juntos perdemos o equilíbrio e despencamos lado a lado sobre a cama desfeita. Depois, nem precisou que nos olhássemos de novo para que começássemos a fazer aquilo que mais queríamos. Bastou que a coragem me fizesse terminar de desabotoar a camisa do pijama dela – e que a sua libido arrancasse com as unhas a roupa simplória com que eu me vestia.

Eu sentia o seu frêmito debaixo de mim como se sentisse o gozo de todas as mulheres do mundo. Ela era a primeira e seria a única, pois o seu gosto residiria em mim e se confundiria com o de todas as outras mulheres que passassem pela minha vida. Eu tinha certeza disso ao sorver seus seios, ao cobrir sua derme com a minha derme escaldante, ao invadi-la com o meu amor em riste e com a seiva que escorresse de mim ao fim daquele pecado original.

Lembro que adormeci ao final de tudo. Era preciso repor o sono perdido com a insônia de outrora e me recuperar do cansaço da carne. Dormi sobre os lençóis molhados pelo suor que havia vazado pela nossa pele. Sem perceber, porém, que outro já entrava no quarto, enquanto Clara acabava de abotoar a camisa do pijama. E mesmo percebendo o estranho vulto passar por mim, eu estava esgotado demais para não acreditar que aquilo fosse uma ilusão sem importância.

Mas se existia alguma ilusão, esta ilusão era de que Clara seria somente minha. Meu pobre coração acreditou que seria o único a entrar por aquela porta e encontrá-la com o pijama aberto, na manhã de um domingo em plena fazenda.

E era justamente ele, Pedro, meu irmão, que passava a percorrer com as mãos o corpo almiscarado de Clara. Era ele que invadia, com os dedos apressados, a fresta que se abria no meio do pijama da prima. A única diferença que havia entre nós dois era a de que ele viu a porta aberta e entrou sem ser convidado, como se o convite estivesse implícito nos gemidos que ouvira um pouco antes e que interromperam seu sono no quarto contíguo.

Ele tinha um jeito estúpido de agarrá-la e empreendia seu amor colocando o corpo daquela menina entre os seus próprios dentes. E tanta estupidez foi o suficiente para que eu acordasse, ainda confuso por tudo o que já havia acontecido. De tão confuso, demorei a esboçar qualquer reação que reprovasse aquele ato. E desisti de uma vez por todas ao perceber que, apesar de ambos notarem a minha presença, insistiam em continuar sem nenhum incômodo.

Confesso que pensei em fugir dali, sob pena de ser dominado por uma curiosidade que possivelmente não encontraria fim. Sairia do quarto, fecharia a porta novamente e me devotaria somente aos meus afazeres matinais e aos preparativos para a festa. Mas desisti e preferi me torturar com a imagem daquele regozijo que se consumava sobre a cadeira diante do toucador.

E mesmo ao final, os dois resfolegaram durante uns bons minutos, ambos com os olhos fechados, como se estivessem em outro mundo, distantes da minha presença. Ao passo que eu, voltando a me afundar em ciúmes e na timidez de sempre, encostava e escorria pela parede fria, agora com a visão dos pássaros que voavam na paisagem dos campos que se expandiam através da janela aberta.

Um vento forte, mais uma vez, fez com que a porta se abrisse sozinha. Os três corpos nus se deixaram tomar pelo temor de que alguém os descobrisse assim. Mas quem entrou pela porta foi Luíza, irmã mais nova de Clara.

As duas se encararam através das lágrimas, se abraçaram com força e se beijaram na boca. Nem eu nem Pedro entendemos o que acontecia naquele momento. Percebi, no entanto, que precisava fechar a porta. E permaneci junto a ela enquanto nossas primas se engoliam com indisfarçada gula, com Clara puxando com os dentes afiados a camisola que cobria o corpo frágil de Luíza.

Ficamos presos naquele quarto por horas a fio. E todos fingiram não notar nossa ausência durante toda a festa. Os pais de Clara e Luíza se refestelavam com a mesa farta que os anfitriões ofereciam, com os vinhos de boa safra dispostos em garrafas importadas. Nossos pais serviam mais e mais, sob o som das músicas típicas que os mais velhos se esforçavam em expelir de seus pulmões. E tudo transcorria sob a normalidade de um dia de sol a pino, calor, festa e alegria. Tios, primos, avós, amigos da família e outros convivas.

Nós, ao contrário, dávamos prosseguimento a nossa orgia, dávamos vazão a nossos hormônios, a nossa pubescência.

O som da quadrilha lá fora chegava a entrar no quarto, impondo um novo ritmo à maneira como nos conjugávamos. Eram sôfregos os nossos movimentos e a cada gesto íamos perdendo um pouco mais o nosso fôlego. Ninguém lá fora admitiria, mas era fácil imaginar o que fazíamos ao longo daquele dia. Pedro amava Clara, enquanto eu amava Luíza; e ele amaria Luíza quando eu enfim voltasse a tomar partido de Clara entre os meus braços, debaixo da minha pele.

E Clara, antes asfixiada pela solidão da cidade, sabia que podia deitar feliz e tranqüila na fazenda, dormindo sempre com o pijama aberto à família.

Wednesday, January 10, 2007

Polaroid

Retratos instantâneos da mediocridade humana

Daniel Soleil

Um falso Gandhi, em sua fome autêntica, come migalhas de pão velho na calçada, sentado sobre um colchão raso, ao lado de outro faquir.

Na rua de baixo, uma gorda prostituta joga os cabelos loiros, fulgurantes, contra o rosto de outra meretriz, enquanto um bêbado observa as duas, sem que possa ter na sua companhia a mulher que sempre quis.

A pétala de uma violeta flutua no ar, sem que a bicha perceba a dádiva com que a natureza está prestes a coroar sua cabeça.

O motoqueiro caído no meio da rua apenas finge sentir a dor que sua mãe deveras sente ao vê-lo desperdiçar sua vida na indigência de todos os dias.

Roubado sem perceber, na saída da estação do metrô, o padre roga aos céus o direito de voltar são e salvo ao celibato, mesmo tendo deixado a batina na paróquia, guardada quase como peça de museu.

Um homem passa com uma criança no colo, tentando velar com a infância do filho a desgraça escrita nos muros por onde passa.

Outro carrega no bolso do paletó uma caixa com um circo de pulgas, que se encarregam de arrumar o picadeiro enquanto não chega a hora de bagunçar o coreto.

O dono do bar solta mais uma dose daquela que matou o guarda para o bandido que acabou de matar o maldito do meganha intrometido, que apareceu bem na hora H para interromper o assalto.

Há também quem atravesse a rua fora da faixa de pedestres, em plena displicência, num desapego em relação à vida - a mesma vida que a cada minuto se esvai mais e mais por entre os finos dedos da mão.

Do outro lado da cidade, a velha sorve uma xícara de sopa quente e já se apruma no sofá para assistir a novela das seis.

No andar de cima, uma vizinha coloca as panelas no fogo para preparar a comida dos filhos que não devem vir, e que talvez nem morem mais ali. Ela, na verdade, nem se lembra direito do que aconteceu.

O que ambas não sabem é que estão seguras em seus respectivos lares, longe da loucura de um mundo que se apressa em acabar.

Usufruem a mesma paz dos enfermos internados. Longe da fúria dos pneus, dos faróis acesos como olhos vermelhos, convalescem sobre os leitos dos hospitais, sem terem mais para onde ir.

Protegem-se também os milionários, arrotando postas de salmão que comeram na hora do almoço, com os olhos cravados em seus notebooks e um dos dedos mexendo pedras de gelo submersas em uma azeda dose de uísque.

On the Rocks...

Senhoras de cabelos roxos saem às ruas do bairro a exibir seus cães. Há uma infinidade de raças passeando lépidas junto ao meio-fio: puddle, lhasa apsu, shnauzer, shih-tzu, spitz, yorkshire, maltês, bichon frisé... Seguram as guias em suas mãos pálidas, de unhas feitas, enquanto seus mascotes cagam as calçadas com fezes da mesma cor de seus cabelos rarefeitos.

Meninos trocam beijos lânguidos com garotas pelo bairro. Outros dão amassos nos elevadores ou fodem empregadas nos degraus das escadas de emergência. E elas, assim que apagam o incêndio daqueles arroubos adolescentes, saem dos prédios com a féria na bolsa, prestes a serem roubadas nos pontos de ônibus ao redor.

Falsas aristocratas despejam ordens nas costas das babás que cuidam de seus filhos, trocam falsos segredos de alcova em conversas inúteis ao telefone, sem desconfiar, contudo, que seus maridos deitam nas camas de outras putas.

Falsas mulheres desfiam memórias de amores passados, vivem das recordações das mulheres que outrora foram e que já não são mais. Mas não se importam, desde que possam continuar observando fotos antigas e lembrando momentos de um passado distante – assim como elas próprias estão distantes da realidade.

Patrões fingem que mandam, funcionários fingem que obedecem. Existe um momento, porém, em que os lados opostos se unem: ao desejarem os seios da moça dadivosa do escritório, aquela que singra os corredores com seu olhar oferecido, sua beleza arrogante, os cabelos tingidos e seu perfume barato.

Ai, meu Deus...

E Deus assiste a tudo isso de boca calada, de modo a não incomodar a mediocridade dos mortais.

E tudo se repetirá da mesma forma no dia seguinte, mesmo que o falso Gandhi não esteja mais a comer suas migalhas, e que um cão sarnento amanheça a roer os ossos do faquir, morto de fome junto à sarjeta.

Monday, January 08, 2007

Poema roubado

Daniel Soleil

Colocou o poema no bolso de trás da calça e saiu do vagão apressadamente. A campainha já estava tocando e a porta do metrô estava prestes a fechar. Parecia mais tranqüilo ao se postar no primeiro degrau da escada rolante. Chegou a dar um bocejo tamanha era essa tranqüilidade. Mas pouco antes de passar pela catraca, sentiu alguém escorar uma das mãos em suas costas e, com a outra, roubar-lhe o poema guardado no bolso direito da calça jeans.

Ao sentir o movimento brusco e arrojado do bandido, tentou identificar seu rosto, o que logo se mostrou inútil. O ladrão disparava em meio à multidão que saía da estação. Então, para reaver o poema, restava-lhe apenas correr atrás dele, em carreira tão desabalada quanto a do larápio. Era preciso extremo cuidado para não esbarrar sem querer em nenhum transeunte - porém percebeu rapidamente que bastava seguir a trilha que seu antagonista abria entre as pessoas mais desavisadas, que ainda não notavam a perseguição.

Embora estivesse sendo tomado por uma raiva crescente em relação ao ladrão, não perdoava, por outro lado, a própria displicência. Acreditava que não deveria ter sido tão descuidado, a ponto de dobrar a folha apenas uma vez, enfiando-a no bolso com uma parte considerável para fora. O poema passara a ser assim uma presa fácil para quem quisesse surrupiá-lo da maneira mais deslavada, como fizera o próprio ladrão. Bastava puxar o papel e correr, o que qualquer trombadinha menos experimentado sabia fazer de cor e salteado, antes mesmo de ter nascido.

Depois da culpa, outro sentimento resolveu assaltá-lo: a dúvida. Pois era de se surpreender que alguém em sã consciência se interessasse em roubar um poema. Mesmo que o ladrão não soubesse a princípio qual seria na verdade o tal objeto do roubo, já havia passado tempo suficiente para que tivesse se interessado em abrir aquela simplória folha de caderno e largá-la em qualquer canto, escondendo-se a seguir em algum comércio, em alguma esquina, abdicando definitivamente da fuga.

O ladrão, todavia, continuava a fugir, dobrando ruas, cruzando avenidas e voando um pouco, como se Deus o tivesse dotado de asas nos pés. Sua vítima, alguns passos mais atrás, passava a notar, com demorada surpresa, que sua carteira havia sido preservada. Seus trocados repousavam intactos dentro da proteção daquele assessório feito de um couro vagabundo. Os cartões de crédito relaxavam uns sobre os outros e sequer percebiam os percalços do portador, desviando de camelôs, ambulantes, realejos e lambe-lambes na calçada.

Correndo atrás do ladrão, era evidente que continuava a querer ver recuperado o poema, que guardara, minutos antes, dentro do bolso. Mas se viesse a imobilizar o bandido, iria querer satisfazer também sua infinita curiosidade. Por que se arriscar tanto só por causa de um poema? Atravessar as ruas feito louco, arriscando a vida na frente dos carros, sujeito a buzina ferozes, ao risco de um atropelamento, ou mesmo de ser capturado pela polícia – que até então não havia se manifestado? Era um desejo tão grande que chegava insaliva-lo, tamanho era o transtorno no fundo de si.

Que valor poderia ter aquele poema que o tornasse digno de ser roubado? Não seria possível sequer lhe atribuir um valor de venda no mercado negro. Mas se essa, ao contrário, fosse uma hipótese plausível, o que poderia lhe agregar valor, de forma que o larápio pudesse maximizar seu lucro? Será que esse valor se mediria pela quantidade de aliterações, assonâncias, rimas (de qualquer tipo), polissemias ou figuras de linguagem? Um soneto construído a partir de versos decassílabos valeria mais ou menos numa avaliação como essa? Era impossível saber enquanto ainda não fosse capaz de deter o ladrão.

Correndo havia mais de uma hora, não interessava se estava cada vez mais atrasado para o trabalho. Parecia ter esquecido que aquela era uma segunda-feira como qualquer outra. Dava para notar a segunda-feira na cara das pessoas que vinham em sentido contrário. Só que, para ele, a multidão não passava de uma massa uniforme, formada por indigentes que não percebiam sua intenção de agarrar e deter o bandido - que segurava a folha com o poema como se portasse o canudo de um diploma. Ninguém esboçava sequer alguma espécie de solidariedade, como a intenção de obstruir a passagem do ladrão ou passar-lhe a perna em uma dessas esquinas no caminho da perseguição.

Em sua fuga constante, o larápio desceu a Frei Caneca, dobrou a Carioca, antes de voar pela 25 de março, 7 de abril e pela Praça da República. Se quisesse, já não precisaria mais contar com a vítima em seu encalço. Mas quando percebia que havia se desgarrado demais, ia diminuindo os passos. Chegava a olhar por cima do ombro, com o canto dos olhos ressabiados, para ver se o enxergava, tentando descobrir também quais seriam seus próximos movimentos e reações.

A vítima, entretanto, indagou-se por um instante se aquilo não se tratava de uma cilada, uma forma de fazê-lo cair numa armadilha em pleno dia de semana. Mas ao se dar conta, talvez já fosse tarde demais. Quando viu, estava nos fundos do terreno de uma igreja baldia, que esgueirava-se antiga ao pé de um bairro distante inúmeros quilômetros da estação. E foi justamente ali que a vítima encontrou o seu bem-querer, a quem, com graça, o poema acabou sendo entregue pelo ladrão – que se escafedeu logo sem seguida, sem deixar pistas.

E assim os novos cônjuges contraíram núpcias e se tornaram eternos prisioneiros do destino que se inscrevia nas entrelinhas de cada verso daquele poema.

Thursday, January 04, 2007

Forever

Daniel Soleil

Era um dia de sol. E assim talvez fosse como um dia qualquer. Ele a beijou na boca, deu mais um sorriso e olhou novamente o mar, que quebrava na praia. Pelo seu semblante leve, parecia que logo sairia correndo em direção às ondas, jogando-se de peito aberto contra a água. Mas antes que desse o primeiro passo, procurou por alguma cumplicidade nos olhos dela. E ao perceber exatamente o que desejava, tomou nas mãos um galho de uma árvore morta e escreveu na areia, em letras grandes, o quanto estava apaixonado por ela.

Enquanto ele cumpria sua tarefa, contraindo músculos e limpando a face do suor que lhe escorria da testa, ela o contemplava embevecida, embora ainda apenas intuísse o resultado daquele gesto tão repentino.

Estavam os dois corpos já bronzeados, quase parte daquela paisagem nascida de uma praia deserta, mas amparada pela densa vegetação que se estendia por trás da longa faixa de areia. Não havia testemunhas contra eles. Estavam livres para que fizessem exatamente o que quisessem. Até mesmo a nudez lhes seria perdoada. E mesmo a frase que ele se esforçava em escrever logo se apagaria, quando o vaivém da maré aos poucos engolisse uma parte da praia.

Ao terminar a escrita, parou alguns instantes para que ele mesmo pudesse observar com calma o que havia acabado de fazer. Seus olhos brilharam então diante da perfeição da caligrafia e buscaram rapidamente os olhos enternecidos da amante. E com a visão de sua boca vermelha, ele mais uma vez quis beijá-la, escorrendo uma das mãos por seus quadris e deixando a outra atada à cintura sinuosa da mulher. Um gesto completava o outro, da mesma forma que os dois se completavam debaixo daquele céu aberto e do sol escaldante. O resto pouco importava, pois sequer descera a serra com eles.

Havia uma casa acanhada atrás do casal, quase escondida no meio do mato. Para os pescadores do outro lado da baía, ela não passava de um ponto branco no meio do nada. Era onde, contudo, os amantes estavam hospedados. Chegaram no dia anterior, ao fim da tarde. Só tiveram tempo de desfazer as malas e colocar em dia a quantidade de sono que lhes faltara ao longo da semana que encerravam. A diferença é que agora retornavam ao leito, mas não para dormir. Uniriam o amor etéreo, que a palavra consagra, ao amor da carne, que o corpo consuma. E fariam isso até que a justa medida do sexo fosse capaz de uni-los em um só fôlego, ou até que esse fôlego acabasse.

A ação do sol havia dourado também os cabelos deles. Os corpos preenchiam-se com perfeição e confundiam-se na forma – como se a natureza tivesse sido capaz de juntá-los antes mesmo que nascessem. Mas sabiam, porém, que o destino não permitiria que ficassem muito tempo juntos. Pois cada um precisava viver sua própria vida quando terminassem aqueles dias de férias. Estavam somente gozando o direito de sentir o sabor do efêmero e guardando espaço na alma para aquilo que chamamos de memória. Não precisariam nem de fotos para que pudessem lembrar. Até porque não poderiam deixar vestígios. Para eles, lembrar seria mais que suficiente.

A casa abandonada era a morada para o pouso do casal, era o abrigo daquele amor proibido. Do lado de fora, a natureza permanecia a mesma, virgem, intocada. Uma gaivota pairava rente à superfície da água, enquanto outras duas, no horizonte, voavam em sincronia, as asas batendo simultâneas, antes que, também juntas, mergulhassem para buscar comida. O sol, por sua vez, deixava as cores mais vivas, como o verde na copa das árvores, o límpido azul, quase translúcido, do mar. Ao fundo, alguns pescadores ligavam os motores de seus barcos. Outros preparavam as redes que garantiriam a féria do dia. Mas a verdade era que, de onde estavam, nunca poderiam notá-los.

Existia uma sensação de liberdade que talvez nenhum deles houvesse sentido antes. Nada mais justo para que aliviassem mais uma boa dose de cansaço. O silêncio ao redor se quebrava somente com o vento soprando as folhas ou com os outros pássaros que também alçavam vôo nos arredores. E tudo isso servia para ajudá-los; os dois amantes esgotados, respirando o ar quente da densa atmosfera da libido que ainda impregnava a alcova graças ao amor que haviam acabado de fazer àquela hora da tarde. Pareciam mesmo sob o efeito de alguma espécie de sonífero; a cabeça dela dormindo em paz sobre o peito dele, enquanto o pênis derreado do amante pendia sobre o início da coxa esquerda.

Quando começou a chover, dois dias depois, ela decidiu ir embora. Conseguira repetir o clímax do primeiro dia, mas precisava adiantar o retorno para que não notassem sua ausência por muito tempo. Queria evitar que desconfiassem de seus propósitos ilícitos, implícitos àquela viagem. Antes de embarcar, olhou com bom humor para a declaração de amor que persistia escrita sobre a areia, apesar da chuva, do vento e da água que se esforçavam em apagá-la. Sentada sobre a popa do pequeno barco, ela acertava com a palma da mão a textura do vestido que reservara especialmente para a despedida. E sequer imaginava que aquela seria a última oportunidade que o destino reservara para que se vissem.

Ele, ao contrário, imaginava de certa forma que jamais se veriam de novo. Era até uma intenção que guardava bem no fundo de si. E quando notou que a frase não havia se apagado com o tempo, achou estranho que ela ainda continuasse exatamente do mesmo jeito que havia escrito dias atrás. Não conseguia encontrar uma razão cabível para que isso ocorresse, porém preferia continuar acreditando que a água do mar logo seria capaz de arrastá-la para o fundo do Atlântico. Talvez fosse só uma questão de tempo ou parte de uma peça que o destino talvez quisesse pregar contra o segredo daqueles dois amantes.

Um mês depois, a frase persistia escrita sobre a areia. Não era possível... As letras prosseguiam com o mesmo relevo, e a água da maré, que às vezes chegava a alcançá-la, parecia respeitá-la de algum modo. Aquilo que podia de haver de mais efêmero naquela praia parecia flertar com a eternidade, registrando para sempre um sentimento que era passageiro, na verdade.

Ele acordava todos os dias na esperança de que sua declaração de amor um dia se apagasse. E se decepcionava a cada vez que colocava os pés para fora da casa. Só iria embora quando já não houvesse nada mais escrito, mas a frase se mantinha intacta, como se tivesse sido obra da própria natureza daquela ilha. Quis um dia ocultá-la com os pés, com as mãos, mas qualquer esforço era vão. Ela se tornava um espectro do que um dia havia sido, até que a ação do imponderável lhe restituísse a forma original, do jeito exato como havia sido cunhada.

Ninguém, por outro lado, tinha o costume de ancorar naquela praia. E mesmo que isso viesse a acontecer, ninguém saberia de quem eram os nomes deixados como rastros na areia. Mesmo assim, ele permanecia assombrado com o que existia de insólito naquilo tudo. E ainda que não conseguisse depreender a princípio, havia sim uma explicação cabível para aquele milagre. Nada no mundo seria capaz de apagá-lo. Nunca. Nem depois que um dia os dois amantes morressem, enfim.