ironia, ainda que tardia

Tuesday, December 26, 2006

Dilema

Daniel Soleil

Existe um provérbio judaico segundo o qual o homem irá pagar depois de morto por cada lágrima que fizer uma mulher chorar. É por essa razão que eu me esforço tanto para te fazer sorrir; para ver se consigo diminuir a minha pena quando estiver do outro lado.

Eu sabia que tomar sua boca com meus lábios talvez viesse a ter um dia o mesmo significado de quem toma entre as mãos um copo cheio de veneno. Mas isso de nada me interessava naquele momento.

Antes do primeiro beijo, eu queria sentir, na verdade, o aroma do seu hálito, tentar depreender de alguma forma os sentimentos que se inscreviam nos seus olhos. Só depois desse pequeno ritual é que eu teria a verdadeira noção da energia que sua alma transferiria para a minha enquanto o calor de seu corpo estivesse entregue às minhas mãos.

Lembro-me que havíamos adiado em um dia aquele instante. O álcool, além de não ser um bom conselheiro, neutralizava nossas sensações, apagava um pouco a pureza da atração que já sentíamos um pelo outro.

Mas também me lembro de ter dito parte do que realmente penso de você. Pois o álcool, solerte como sempre, parece manter uma cínica amizade com a verdade – por mais paradoxal que isso possa parecer. Você também me disse algumas coisas, mas - se bem me lembro - eu já tinha conhecimento de boa parte delas. E nos despedimos, enfim, tentando esconder nas entrelinhas o pouco que ainda acreditávamos que fosse segredo.

Ninguém reconhece, no entanto, o dilema eterno e inerente que a natureza impõe à condição do homem. Dividido entre libido e coração, muitas vezes a cabeça é chamada a mediar a disputa. E é no meio desse embate que somos lançados às raias da loucura, muitas vezes enveredados por um caminho sem volta, uma estrada percorrida em altas velocidades, passando sempre por curvas perigosas.

O homem, embora não pareça, não sabe lidar com a ambigüidade tão bem quanto a mulher. Pois dotado de uma consciência apenas racional, reconhece seus erros rapidamente e passa o resto da vida fugindo das conseqüências. E não chego a ser uma exceção à regra.

Quando percebi que a atração que sentíamos um pelo outro configurava uma forma efêmera de amor, consegui dormir mais tranqüilo, confesso. O problema é que não importa a duração de um determinado erro, mas o tempo em que as dores causadas por ele irão persistir em nossas vidas e na existência de outrem.

Por que a nossa alegria e a energia que você sempre renova em mim precisa, inevitavelmente, ser a razão das lágrimas de terceiros? Por que condenar o que poderia ter sido um único beijo à pecha eterna de um pecado capital, sem direito a qualquer tipo de perdão? Por que se obriga o destino a fazer persistir a culpa por conta de algo talvez tão passageiro?

Poderíamos ter deixado tudo isso limitado ao terreno do fascínio. Sim, pois o fascínio era o mais correto sinônimo para aquilo que sentíamos inicialmente. Era o que me permitia contemplá-la à distância sem que fosse levado rumo ao pecado dos últimos dias. Era o caminho para que nossos olhos se cruzassem em intenções ainda secretas, numa alegria provocada somente pela ciência da existência um do outro.

Enquanto insisto em me culpar, a chuva continua lá fora. E é por essas lágrimas de chuva que terei de pagar um dia. Minha pena só faz aumentar a cada minuto que passa. E a minha esperança em diminuí-la resiste apenas na lembrança do seu sorriso, que não me canso em querer encontrar de novo. Essa matemática, por demais subjetiva, no fim das contas só sabe fazer com que as coisas se equivalham. O que me leva a querer ter distância da morte e contar com a sorte de me conjugar de novo ao seu corpo delgado.

É assim que o pecado se alimenta, cresce, viceja. Mas também é deste modo que, para cada noite de chuva, existe um sol que provém dos teus olhos, num sorriso largo, sorriso feminino e, de certa forma, até mesmo infantil. E é assim que eu também não resisto muito tempo à sua ausência.

Sem você, todas as minhas energias se esgotam. Isso, contudo, não me leva a uma imensurável necessidade de tê-la sempre perto. Pois saber da sua liberdade é parte do que me repõe a vida. E ter você em pensamento já é para mim alguma espécie de milagre.

O sexo, por sua vez, consagra a libido e materializa o amor. O sexo que, quando se materializa, não se transforma em amor – ainda que em um amor momentâneo – é um ato quase sempre desprovido de alma e sem retorno. Ninguém quer de volta aquilo que não consegue amar. E não me faltam certezas de que estávamos quites com esses tais pré-requisitos.

Seria injusto então que interrompêssemos tudo isso com o único propósito de sermos racionais. O mesmo sexo que consagra a libido consagra o que há de irracional nos instintos mais humanos. É o que torna o amor cada vez mais cego. A libido em si já inclui uma boa dose de irracionalidade.

No início, todos os desejos parecem bons, mas é o resultado das provações futuras que irá indicar o que é verdadeiramente bom ou não. É preciso estar pronto para viver tais provações para que não haja como ser subjugado, para que não se enfraqueça diante das dificuldades inerentes ao que sentimos agora.

Mas confesso que só não me dou o direito de abandonar o que sinto de tão forte graças àquele antigo mandamento de Antoine de Saint-Exupéry, segundo o qual também serei eternamente responsável por aqueles que cativo.

Friday, December 22, 2006

Fascínio

Daniel Soleil

Tinha a pele untada por um sebo oleoso por causa do calor daqueles dias. Possuía o peito ungido por uma gota de suor que escorria por sua carne. Já era tarde da noite e ainda não conseguira dormir. Seus temores não o abandonavam nem àquela hora da noite. Revirava-se dezenas de vezes sobre o lençol antes de tomar coragem e enfim poder fechar os olhos - e esvaziar a cabeça dos maus pensamentos que o assolavam cada dia mais um pouco.

E quando uma espécie de paz parecia assaltá-lo, e uma boa dose de sono lhe pregava as pálpebras, o som de uma buzina ou de uma freada mais brusca interrompia tudo e fazia com que permanecesse irrequieto sobre o colchão de sua cama. O travesseiro, ensopado com sua transpiração, já não servia mais como um bom conselheiro. Seus odores, que ali se acumulavam, eram mais uma espécie de veneno do que algo realmente inofensivo.

Seu corpo parecia febril, embora não padecesse de uma febre física. Mas não era místico o suficiente para que admitisse que sofria com uma febre que provinha do seu espírito, na verdade. O desânimo provocado por aquele calor lhe tirava, inclusive, a vontade de se levantar e abrir a janela, o desejo de minimizar a falta de ar que também sentia. Não havia nada que lhe pudesse refrescar a derme àquela hora da noite – muito menos refrescar-lhe a alma.

O incômodo era tanto que um princípio de câimbra começava a se insinuar na batata de sua perna direita. Já não poderia se levantar da cama, mesmo se quisesse. Os outros cômodos do apartamento se tornavam distantes, o que desencorajava qualquer intenção de sair daquele quarto, buscando algum refúgio em um copo de água gelada, ou mesmo na brisa suave que soprava na fina fresta que deixara aberta na porta da sacada da sala.

Aquela insônia estava mais para algum tipo de enfermidade. Uma enfermidade que, além de lhe consumir o corpo, consumia-lhe a essência propriamente. Mas essa mesma insônia talvez fosse menos a causa que o efeito em si. Havia um motivo para que aquele calor viesse a incomodá-lo mais do que nos outros anos. Era um motivo que provinha da pele quente de Eva. E que, mesmo em pensamento, lhe aquecia a pele, o sobrecenho - o corpo todo, em suma.

Tinha plena noção do que sentia, mas estava aprisionado na intensidade desse sentimento. Não que não pudesse revelá-lo, pois se tratava de algo mais evidente do que qualquer outra pessoa pudesse imaginar. O problema estava, ao contrário, na dificuldade de consumá-lo. Seu coração a desejava - porém também tinha plena consciência de que aquela era uma paixão interdita, um modo imponderável de sentir alguma coisa por alguém.

Aquele era sim um modo insólito de sentir o que sentia. Mas admitia que o simples fato de vê-la já lhe servia para que começasse a repor as energias do corpo. Este ciclo então se completava quando as palavras dela passavam a pairar em torno de seus ouvidos – palavras de uma alegria desmedida, contornadas sempre por seus lábios em forma de sorriso. E eram as horas em que se abstinha daquela presença a possível razão de sua insônia.

Nas noites em que o incômodo era menor, ele gostava de lembrar da primeira vez em que quis beijá-la. Era o seu atalho para que sonhasse com ela e se redimisse da inércia de não beijá-la de fato ao longo do dia.

Lembrava-se que era uma segunda-feira e que ela usava um batom cor de chocolate - pelo menos era assim que identificava aquela cor. Sabia que estava com os olhos cravados naquela boca, mas não chegava a se censurar por parecer tão óbvio. Afinal de contas, notava, por sua vez, que ela também prestava uma certa fruição ao castanho dos seus olhos, ao modo como a observava, estampando sempre uma safada ironia no semblante.

Percebeu uma vez, no entanto, que ela também se aprisionava à sua maneira. Que ela queria lhe roubar um beijo, mas sentia não ter coragem suficiente para tal. Sabia que tinha a loucura inscrita em sua essência, mas já estava devidamente domesticada àquela altura do campeonato. Não deixaria que seus instintos, aliados a uma boa porção de feromônios, tirassem-na do sério com tanta facilidade. Preferia guardar os arroubos em sua imaginação, apenas.

Não que não chegasse a perder o controle algumas vezes. Reparava com atenção demasiada um pedaço do peito dele que se abria, e que a fresta da camisa entreaberta revelava. Mesmo o som do coração em disparada chegava a ser ouvido por algum tipo de sonar que se escondia por trás da intuição do ser amado. Mas foi num dia em que ousou pousar a mão sobre o braço dele que ficou nítido que ambos tinham mesmo intenções recíprocas.

O que ele achava mais bonito em Eva era aquele sorriso, um humor quase sem limite. Ela não se resumia, todavia, apenas a esses atributos mais subjetivos. Mas ele também admirava o jeito como ela se entregava às responsabilidades, o eterno desejo de desbravar o mundo, embora soubesse muito pouco a respeito daquela nova musa. Sua percepção, contudo, não se restringia ao que pudesse ver, mas também ia de encontro ao que ela guardava nas partes mais recônditas de si mesma. Como o jeito de criança que às vezes emergia...

Ambos compartilhavam de alguma espécie de fascínio. E sabiam que contra esse fascínio nunca haveria argumentos. O único problema é que nenhum dos dois tivera coragem até então para transpor a fronteira que transformasse toda essa quantidade de fascínio em realidade. Pareciam fazer questão de que isso ficasse unicamente a cargo do destino. Quem sabe? Nem eles sabiam, na verdade. Assim como ainda não tinham idéia de que tanto suor e tanta loucura seriam transformados, um dia, em amor – e que esse amor, hoje tão público e notório, seria enfim um fato consumado
.

Friday, December 08, 2006

Iridescência

Daniel Soleil Noir

Era de uma vela acesa que provinha
A luz que desvelava o seu sorriso.
Era essa luminosidade barroca
A responsável também por revelar
Cada um dos matizes de sua íris,
A sagrada ambigüidade de cores
Que santificava o seu semblante
Com a doce consciência do pecado.

Sem dó nem piedade

Daniel Soleil Noir

Sagradas são as entranhas nas
quais ele se embrenha agora.

Já não se faz de rogado como
outrora se fazia, já não teme
de nenhum modo a volúpia
daquelas carnes.

Quer ouvir somente o fôlego dela

se esgotar junto ao pé do seu
ouvido, enquanto insiste em
invadi-la sem dó nem piedade.

Thursday, December 07, 2006

Epifania

Daniel Soleil Noir

O botão aberto da camisa revelava um pouco mais de sua pele branca e dos pêlos que cobriam boa parte de seu peito. Chovia forte naquele início de noite, o suficiente para deixá-lo ensopado - o que só não aconteceu porque já havia encontrado abrigo sob o toldo de uma loja fechada. O que não evitou, contudo, que uma gota um pouco mais furtiva se precipitasse através de um furo minúsculo aberto naquela prosaica superfície de PVC. E que essa mesma gota escorresse pela fenda da camisa como se fosse uma gota de suor.

Estava calor, é verdade. E sua transpiração contribuía para que a camisa se colasse ainda mais ao corpo. Mas isso não chegava a incomodá-lo. Diante de seus olhos escuros, os carros se amontoavam enquanto esperavam que o farol adiante se abrisse, enfim. O problema era que o trânsito já havia se tornado um caos, e mesmo com o semáforo aberto não havia quem conseguisse se deslocar mais que alguns metros sobre o asfalto úmido e cravejado por gotas cada vez mais pesadas. Era aquele transtorno todo que o incomodava de fato.

A chuva forte o mantinha ilhado sob aquele toldo. Não poderia sequer fazer menção de dar um passo à frente, sob o risco de ficar encharcado, sem a mínima perspectiva de chegar ao carro, guardado em um estacionamento, um quarteirão mais à frente. Mas já se conformava em ficar ali parado, sem guarda-chuva, assistindo à confusão de luzes que provinha dos faróis dos carros que iam e vinham, mão e contramão, a passos de cágado sobre o leito da rua. Pelo menos tinha a sorte de não dividir abrigo com nenhum outro transeunte.

A calçada estava vazia. Escura. O comércio havia fechado pontualmente às 17 horas, quando as nuvens de chuva apenas começavam a escurecer o céu daquela segunda-feira. Foi o momento também em que as pessoas começaram a descer dos prédios ao redor, gente que se precipitava em direção aos pontos de ônibus, aos táxis que ainda passavam, e aos estacionamentos que faturavam alto pelo bairro. Mas nessa hora ele ainda estava no escritório, entediado, mantendo-se acordado (e vivo) sob efeito de um copo de café.

A solidão debaixo da tempestade era até, de certa forma, um tanto agradável - bem como a brisa que o tempo soprava e que refrescava ainda mais o seu rosto calmo e sem expressão. Funcionava, inclusive, como uma ilha de tranqüilidade em meio ao niilismo que se apoderava quase que totalmente de seu cotidiano infeliz. Afinal de contas, sua vã filosofia já reconhecia, havia algumas semanas, que seu modo baço de enxergar o mundo não permitiria que ele pudesse ver as coisas de uma maneira um pouco mais otimista, quem sabe.

E essa boa dose de niilismo só não era trágica porque ele não era alguém que se levava a sério propriamente. Tinha a plena consciência de que a sua própria vida não era mais que uma quimera, talvez uma história para ser contada com muita ironia, como se pudesse ser o bobo da corte de si mesmo. É possível que esta fosse a justificativa mais racional para que, apesar de tudo, ainda mantivesse estampado em seu rosto jovem o sarcasmo de um meio-sorriso preenchido pelo cinismo com que enxergava as pessoas e as coisas.

Houve uma hora, porém, em que uma alma veio lhe fazer companhia. Era ela... arriscando um trote curto, indo de um toldo a outro na tentativa de se proteger, já que também havia esquecido o guarda-chuva. Quando ele notou de quem se tratava, deixou os pensamentos de lado e logo mudou sua fisionomia. Começou a tratá-la com a deferência de sempre, com a qual já estava acostumado a lidar com a maioria das pessoas. Só que, de repente, também se viu envolvido naquele sorriso dela, que aos poucos ia quebrando a monotonia.

À medida que iam conversando, ele foi notando que alguns pingos de chuva haviam caído sobre os ombros descobertos dela. Os cabelos, no entanto, mantinham-se secos em sua maioria, apesar de alguns terem se molhado no curto caminho que empreendera até ali. Havia se protegido, aliás, com uma pasta recheada por coisas do trabalho. E aos poucos ele foi percebendo coisas que nunca durante o expediente seria capaz de notar. Detalhes que o cotidiano trata de deixar ainda mais imperceptíveis.

Ela vestia uma camiseta azul-marinho sobre sua pele morena, em um contraste capaz de transformá-la quase em uma epifania. E talvez ela fosse realmente uma epifania. Uma aparição que veio sem aviso no meio daquele temporal que não dava mostras sequer de que uma hora fosse terminar. Enquanto a observava, absorvido por aquela contemplação, perguntava-se como permitira-se se enredar em sua conversa, em uma simpatia incomum na maioria dos demais exemplares de sua espécie – ao menos naqueles que também conhecia.

A coincidência era que ela também estava a observá-lo. Olhava para a fenda aberta na camisa. Para os cabelos molhados e colados junto à testa. Para o sorriso irônico e ambíguo que lhe conferia e aumentava ainda mais a aura de mistério que fazia questão de continuar mantendo em torno de si. Até mesmo a barba incipiente, que já acinzentava-lhe a feição àquela altura da noite, chamava sua atenção. Indagava-se quem seria aquele cara com quem convivia todos os dias, mas que não permitia que lhe perscrutassem nada da personalidade.

Aos poucos a intensidade da chuva foi diminuindo. O que chegou a entristecê-la em um primeiro instante. O sorriso, que antes parecia tão vivo, ia perdendo algumas cores. Não sabia, entretanto, o efeito que havia causado em seu interlocutor. Ainda não tinha consciência de que havia acabado de salvá-lo da desesperança de minutos atrás. O que só foi perceber quando um dos braços dele conseguiu cingir sua cintura; quando a boca dele enfim alcançou a sua.