ironia, ainda que tardia

Tuesday, June 28, 2005

Rumo ao horizonte

Daniel Soleil Noir

Rita há muito tempo queria saber. Mas Jorge, por sua vez, fazia questão de não contar. Só dizia que tinha um segredo e que não poderia falar mais nada sempre que ela perguntava, mas prometia em seguida que um dia contaria. Contrariada, só depois de muito tempo, e de muita insistência, ela aceitava o argumento, e bastava um beijinho de fim de tarde para que esquecessem o assunto e passassem a dar mais atenção a assuntos um pouco mais imediatos. Coisas de namorados.

Jorge tinha uns quinze anos e se apaixonara por Rita ainda na época da sétima série. Mas, naquele tempo, ela sequer dava bola pra ele. Preferia os meninos mais velhos, aqueles que já estavam para sair do colégio. Um dia então correu um boato na cidade de que Jorge tinha um segredo guardado a sete chaves por sua família e que por nada nesse mundo ela permitiria que ele caísse nos ouvidos da gente do lugar. A notícia despertou o interesse de Rita, que logo consentiu em ser namorada de Jorge.

A partir daí, a família da menina, sabendo do namoro, cogitou que o tal segredo fosse uma doença incurável. E mesmo que a curiosidade de todo mundo a respeito continuasse muito grande, talvez fosse melhor se afastar para evitar o contágio, diziam. Rita fez cara de choro na mesa de jantar, enquanto o relógio da sala badalava às costas do avô, justamente de quem partira a sentença para que ambos colocassem fim ao tal namoro adolescente.

No dia seguinte, ao pé de uma árvore no sítio em que o Jorge morava, Rita contou a desconfiança da família em relação ao seu segredo, cuja repercussão já começava a alcançar também os lugarejos vizinhos. Jorge ouviu e não esboçou qualquer reação, como se estivesse acostumado a essa espécie de boato. Rita, porém, não estava acostumada e lançou, numa frase ríspida, que só continuaria o namoro se ele lhe contasse que segredo era esse. Jorge quis saber se ela também desconfiava de uma possível enfermidade. Ela olhou nos seus olhos com a vista marejada e, com raiva na voz, perguntou: e por que não? Ele sentiu um arrepio e levantou-se da raiz onde estava sentado.

Rita já começava a limpar as lágrimas que desciam de seus olhos, motivadas pelo movimento súbito que seu amor fizera para se erguer. Contudo, não se levantou. Preferiu encará-lo lá embaixo, como se demonstrasse uma dose de arrependimento por cobrá-lo de maneira tão acintosa. Jorge limpou a parte de trás da calça e ficou de costas para ela, que também não disse mais uma só palavra. Ao se voltar para a namorada, deu um sorriso tímido e falou que enfim lhe contaria.

Após se comover com o sorriso do rapaz, Rita se aprumou sobre a raiz para ouvi-lo com atenção. E se surpreendeu quando ele escapou de seu campo de visão e começou a voar em torno da árvore, a voar um pouco mais para o alto, e a fingir, em seguida, sumir de encontro à linha do horizonte. Jorge tinha asas nas costas que pareciam de algodão. Ele tirou a camiseta que vestia e as libertou para alçar seu vôo secreto aos olhos dos demais citadinos. O que Rita também via era o rosto do querido iluminado pela tarde de sol e a cor das asas que se confundiam com as nuvens no céu.

Surpresa, como não poderia deixar de ser, Rita se levantou e deu alguns passos, o suficiente para sair da sombra da copa da árvore. Com isso, Jorge logo voltou a se aproximar, até pousar de pé diante dela, com as asas ainda batendo devagar. Com os pés em terra firme, ele tomou o queixo dela entre seus dedos e perguntou o que havia achado da novidade. Rita não disse nada, mesmo que os lábios ainda estivessem entreabertos, assustados com o que nunca imaginara antes.

Jorge fez menção de beijá-la, mas Rita se esquivou num primeiro instante. Queria ter certeza a respeito do fenômeno. Por essa razão, perguntou se ele era um anjo. Jorge riu, no entanto. Sem graça, preferiu não responder. Já a curiosidade ressaltava o azul dos olhos de Rita, que olhava para ele com uma enorme indagação inscrita na retina. Jorge, contudo, continuava com a mesma feição e não respondeu se era ou não um anjo. Mesmo diante da insistência da menina.

Só depois Rita aceitou beijá-lo e, voltando a rir, cobrou-lhe novamente uma resposta. Sem sucesso, ensaiou uma nova pergunta. Seria ele filho de pássaro? Na cabeça dela, a pergunta até que tinha coerência, embora conhecesse os pais de Jorge e soubesse que nenhum dos dois tinha qualquer coisa de ave. O pai do namorado não passava de um caseiro pobre que tomava conta da propriedade do patrão, empresário da cidade grande e que costumava visitar o sítio apenas aos finais de semana. Já a mãe passava as tardes fazendo costura para fora, preparando as encomendas da vizinhança.

Diante de uma curiosidade que não diminuía, enquanto ela já começava a morder com força os próprios lábios, Jorge decidiu negar a possibilidade de que fosse um anjo ou um pássaro. O que ele era então? Ela não se contentava com meias verdades e deixava cada vez mais claro o que queria saber. E, de preferência, que fosse a verdade completa.

Também sem resultado, Rita passou a contar, sem querer, os planos que tinha para a novidade. Disse que a contaria para o avô, o mesmo que proibira os dois de se reencontrarem. E para a mulher da quitanda, que também não se cansava de recriminar a companhia do menino e que ficaria encarregada de espalhar a história aos quatro ventos. Só que Jorge fez questão de lhe interromper de repente e pediu que ela mantivesse aquele segredo somente entre os dois, que não o contasse a ninguém.

Mais uma vez ela quis saber o porquê. Jorge respondeu que não queria que o resto da cidade o tratasse como uma aberração a partir dali, e que era mais prudente que tudo continuasse como especulação, tema das fofocas de quem, segundo ele, não tinha nada o que fazer da vida. E Rita acatou a ordem, selando o acordo ao beijar por duas vezes os dedos cruzados de uma das mãos.

Rita e Jorge passaram a se ver com mais freqüência depois que ele lhe contou o segredo. Era evidente o fascínio que passava a exercer sobre ela com as tais asas dissimuladas atrás das costas, que ao mínimo comando se abriam e o faziam voar em torno de onde estivesse. Encontravam-se à tarde, noutros dias se viam mais à noite, e até o próprio envolvimento passava a ficar mais próximo à medida que o tempo passava e ele ia pairando sobre o coração apaixonado de Rita.

Na família da menina, todos passaram a questionar o que causara essa mudança de comportamento. A mãe resolveu apostar na hipótese de que ela soubesse algo sobre o famigerado segredo. Quando chegou a hora do jantar, todos à mesa resolveram perguntar, numa confusão de vozes, a causa dessa mudança, e não precisaram de rodeios para que falassem abertamente do segredo de Jorge. Rita temeu que conseguissem lhe arrancar a verdade, pelo menos até o momento em que resolveu contar uma mentira para que mudassem de assunto e a deixassem em paz.

Ela confirmou a história da doença, mas negou que fosse contagiosa. Disse que Jorge poderia morrer a qualquer momento, assim como poderia chegar sem percalços à velhice. Essa foi a história que cada membro de sua família passou a fazer questão de espalhar cidade a fora. E Rita passou a não sofrer mais com a cobrança dos pais, dos irmãos, dos tios e dos avós.

Numa noite em que se encontraram, Rita contou a Jorge sobre a mentira. Mas ele a recriminou por causa disso. Disse que ela deveria ter permanecido sem dizer nada, fingindo que simplesmente não sabia. Ela então fechou o semblante, mas logo resolveu virar o jogo e reclamou que, nesse tempo todo em que sabia qual era o segredo, ele nunca havia lhe oferecido a chance de voar também. Jorge respondeu que não poderia lhe dar a carona sem que antes soubesse para onde. Não tinha certeza sobre quanto tempo poderia agüentar com ela sobre suas costas, deitada entre as duas asas.

Rita disse que queria alcançar com ele a linha do horizonte e voltar para onde estavam, sentados sobre o gramado à beira de um barranco. Ela chegou a tentá-lo com a paisagem que se via lá de cima e com a excelente plataforma de decolagem que havia arranjado sem querer.

Jorge decidiu assumir o risco e a colocou sobre suas costas. Partiram e seguiram na direção do horizonte. E gozaram o prazer da viagem mesmo que ela fosse uma viagem sem fim.

Friday, June 17, 2005

Aos olhos azuis de Mariana

Daniel Soleil Noir

O azul escuro do manto de Nossa Senhora naquela igreja acanhada de interior nem se comparava à cor dos olhos de Mariana. Eles estavam gravados na minha retina, pois faziam parte da minha vida desde a nossa primeira comunhão. E de repente me peguei atônito ao não tirar a vista daquele azul claro, sutil e cristalino de sua íris. O ambiente pouco iluminado naquela tarde de sexta-feira dilatava um pouco sua pupila fazendo-a parecer um dia de maré baixa. E a miopia era a única imperfeição de uma visão cujos óculos discretos não conseguiam atrapalhar a minuciosa fruição que eu prestava.

- Amém! – o povaréu respondeu em coro à seqüência da missa.

Permaneci calado. Não havia razão para prestar atenção num rito que eu sabia de cor desde os tempos de moleque, quando vovó nos levantava da cama com a xícara de chá tremendo em suas mãos quentes e enrugadas. Preferi continuar olhando para Mariana, desta vez me atendo aos seus cabelos lisos, de um loiro escuro que partia quase para o castanho claro. Eles desciam pelas espáduas e pareciam o hábito de uma santa, subitamente beatificada enquanto eu continuava bestificado, sem perder a atenção em instante algum. Numa ousadia da imaginação, pura fantasia, dava para sentir o cheiro bom que impregnava cada um daqueles delicados fios.

- Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, – enfim sussurrei com os outros – mas dizei uma palavra e serei salvo.

Mariana vestia um pulôver preto que trancava seu pescoço e contrastava com sua pele alva, rasgada somente pelo sorriso discreto que acentuava a beleza do rosto macio. Vez por outra, demonstrava certa impaciência, cansada da lentidão do padre que já levava a missa para a terceira meia hora. Ao genuflexório, apoiava o cotovelo esquerdo sobre o encosto do banco à frente, deitando a cabeça na palma da mão, formando um ângulo de cansaço em que a bissetriz era o bocejo intermitente. E um desespero me abatia no momento em que seu olhar desviava da minha rota.

Meu instante de hipnose acabou com o culto e eu me senti preso, sentado no banco ao lado de Mariana, a cerca de dois metros à esquerda. Levantou-se calma e eu também me ergui, ainda que trêmulo. Só que ela caminhava com mais facilidade, pois fazia o mesmo caminho dos outros. Quis segui-la e me incomodaria ser flagrado - confessando o mínimo - numa atitude quase desesperada para não perdê-la. Procurei manter uma distância segura, na qual pudesse prosseguir em minha contemplação. Vi sua chegada ao esquife diante do altar, seu olhar tenro deitando-se sobre o rosto pálido do cadáver e a mão caindo leve nos vincos daquela derme fria.

Eu havia saído de meu apartamento em São Paulo convocado por um recado gravado na secretária eletrônica. Aproveitando minha folga de cinco dias e o fato de que não existia programa melhor na agenda, resolvi comprar a passagem de ônibus para viajar rumo ao interior. Ao menos papai cozinharia seu tradicional arroz de carreteiro, o qual parecia me chamar pelo odor a quilômetros de distância. O problema foi que enchi a cara na noite do embarque e viajei numa ressaca violenta, percebida por meu irmão mais velho ao me buscar na rodoviária. Como a madrugada não foi suficiente, acordei à uma hora da tarde com a casa vazia e com um bilhete me intimando pregado na porta da geladeira.

Era justo que eu estivesse no velório e na missa de corpo presente de Dona Cecília, a tia mais nova do prefeito. Viúva muito cedo, sempre foi amiga da família. Ensinou-me a ler e a escrever aos cinco anos, antes de todos os meus colegas da escolinha primária. Tomava-me o ponto e a caligrafia após acordar no final de cada tarde, servindo uma torrada com margarina e um copo de leite puro fervido. Meu irmão achava monótona aquela vida de estudar à mesa, na cozinha quente da nossa casa. Preferia sair para empinar papagaio em cima da laje da casa do zelador da prefeitura. Nunca imaginei naquela época que a tão doce senhora emprestasse seu esforço e carinho também para uma tímida menina da minha idade que morava logo ali na esquina.

Roubei meu primeiro botão de rosa vermelha por causa de Mariana. Tinha oito anos e invadi o quintal do sobrado da mal-humorada Dona Neusa. Dei o presente e arcaria com as conseqüências sozinho: uma surra de cinto da tal mulher, se Dona Cecília não interviesse em meu favor. Três anos mais tarde, aprenderia com ela no catecismo que Deus não gostava das pessoas que pegavam as coisas dos outros sem permissão. E eu não desviava a atenção do quadro negro, muito menos dos slides projetados na parede esverdeada da sala de aula. Mariana fazia parte da minha turma, junto a outras quatro crianças, e sentava-se ao meu lado sempre que a outra menina do curso faltava.

Ganhei um violão aos 15 anos e Mariana tornou-se automaticamente minha primeira aluna. Jantávamos com seus pais e sua irmã mais moça e íamos para a varanda no intuito de não atrapalharmos os que gostavam de assistir a novela das oito. Poderíamos até ter começado a namorar ali. Mas eu cultivara um respeito grande por sua família e preferi me preservar. Acredito que ela também possuísse uma razão para não ficarmos juntos, embora fôssemos muito ligados. Talvez encarássemos nossa relação como um convívio entre dois irmãos.

Logo que o cortejo começou a seguir para a necrópole, debaixo do sol forte daquela tarde, bastou-me apenas esperar o momento certo para que me aproximasse dela fingindo naturalidade. Mariana notou minha presença e me deu um sorriso educado, condizente com a ocasião. Continuei a seu lado, como que prestes a lhe contar um segredo, mas sem coragem de lhe dizer qualquer coisa. Em alguns momentos, porém, eu notava um certo desconcerto da parte dela. E atribuía isso à hipótese de que talvez estivesse sendo inconveniente por essa minha proximidade. E tal possibilidade, por sinal, pouco me importava, pois eu ainda me dava o direito de fazer parte da vida dela, mesmo que o destino - naquela minha ainda ingênua concepção - tivesse nos separado no plano físico.

Pouco antes de chegarmos, todavia, Mariana me surpreendeu ao tocar meu braço. E me assustou ao apertá-lo com força, tirando-nos da fila com cuidado para que o restante das pessoas não percebesse aquela nossa fuga. Ousei pensar em perguntar a razão daquilo, mas um sorriso sem graça tomou em meus lábios o lugar de qualquer indagação. Assim, apenas me entreguei ao novo caminho que passávamos a seguir juntos, deixando a estreita estrada forrada de pedras e adentrando um cafezal ali próximo, já perto da época da colheita.

Após uns dez minutos de uma breve andança que parecia sem fim, paramos logo à frente de um cafezeiro bonito e Mariana me lançou outro sorriso: uma nota mais baixa que o anterior, um tanto mais acanhado e menos seguro também. Hesitei um instante, porém pousei a mão sobre um de seus ombros para deixá-la mais segura. Eu havia mudado bastante depois daquele tempo todo. Era natural que, apesar da curiosidade recíproca, a timidez viesse a intermediar uma primeira conversa. E passado esse primeiro momento, enfim perguntei a razão para aquela nossa saída repentina.

Notei que os olhos de Mariana já não estavam como na igreja. A luz do sol fizera subir de novo a maré de sua íris. Mas outro motivo fazia com que sua vista transbordasse algumas lágrimas. E confesso que aquilo foi capaz de me desconcertar. Eu simplesmente não sabia mais que tipo de reação deveria pelo menos esboçar. Imaginei que um gesto de carinho poderia ser rechaçado se não se adequasse às razões dela para me levar até ali. Optei pela espera e esperei que ela enxugasse com as mãos trêmulas o seu rosto molhado. Lembrei então de quando, no passado, eu sorvia com a boca o choro que escorria em sua pele antes de cair no chão da varanda.

Recomposta do choro, ela interrompeu com um pedido aquela minha nova seqüência de recordações. Disse que precisava me contar algo e que eu me preparasse para ouvir o que ela tinha a me dizer daí em diante. Enquanto isso, durante os segundos que precederam sua frase seguinte, eu me perguntei temeroso o que iria escutar.

Contou-me que, uns cinco anos antes, tiveramos tido uma filha e que nela havia colocado o nome de Clarissa. Mas disso eu não me lembrava. Jamais me passara pela cabeça uma coisa como aquela. E é de sexo que estou falando. Porém, Mariana me disse aquilo com tanta convicção, que não pude deixar de acreditar. E resignei-me a indagar somente como tudo havia acontecido. Sua resposta foi a surpresa diante do que julgava ser uma falta de memória imperdoável. Só que por mais que eu tentasse, não conseguiria lembrar.

Veio então a vez dela de fazer as perguntas. Perguntou se eu não lembrava do nosso último encontro em nossa cidade natal, se não lembrava do dia em que corremos por entre aqueles mesmos arbustos carregados no cafezal, até que nos jogássemos nus por sobre a terra e déssemos início ao projeto de nossa filha. Contudo, suas palavras tinham mais vivacidade do que qualquer imagem que pudesse passar pela minha cabeça, já que simplesmente eu não me lembrava de nada. Poderia até parecer crueldade da minha parte, mas eu não podia fazer nada para contrariar a verdade.

Surgiu-me, enfim, uma dúvida a respeito do fato de Mariana estar me fazendo tal revelação depois de tanto tempo. Não que aquilo justificasse a minha suposta falta de memória. Tratava-se de um modo de não levar a culpa sozinho por termos negligenciado tanto os rumos do nosso destino. E ela prontamente argumentou com palavras das quais eu já não me lembro mais. Deu as suas razões e a única coisa que eu sei é que consenti em concordar com ela, envergonhado sem saber o porquê.

E além do mais, eu não guardava recordação alguma de já tê-la visto nua. De ter profanado algum dia a imagem que guardei e que fui construindo ao longo da adolescência. O melhor eu já havia perdido. Se não houvera perdido de fato, pelo menos se apagou da minha memória no mesmo instante em que aconteceu. E desapareceu do mesmo modo que o amor que talvez tenhamos empregado naquele ato em si. Um amor bem diferente, aliás, do que guardávamos em um passado bem mais remoto. E diferente daquele que eu sentiria por minha filha logo que a conhecesse.

Restou-me querer saber como era essa nossa filha. Com quem ela se parecia.

Mariana disse que Clarissa era a minha cara e que seria mais parecida se os seus olhos não fossem azuis como os olhos da mãe. E percebi, em suma, que por mais que eu não me lembrasse, Mariana e eu não éramos mais um antigo álbum de retratos.

Monday, June 13, 2005

Sodomia, o conto

Daniel Soleil Noir

O sexo anal foi inventado pelos senhores de escravos. Era com essa frase que Otávio gostava de começar seus discursos nas noites de sexta-feira. É claro que, para proferir essas palavras, ele precisava tomar um gole de caipirinha ou algo que o valha. A bebida era responsável por inflamar ainda mais o que dizia. E ai de quem ousasse discordar de seus pensamentos... O cara que disse, por exemplo, que o sexo anal fora inventado na Europa, pelos senhores feudais, talvez sequer esteja vivo atualmente para contar a mesma história. Aquele que sugeriu a Grécia Antiga como berço da sodomia acabou preso numa delegacia por causa de uma denúncia do próprio Otávio. No entanto, ele se mostrava afável diante dos que duvidavam de sua sanidade mental. Argumentava, após duas ou três doses de uísque falsificado, que a loucura é o item de maior inclusão social da face da Terra. Ultrapassando, com larga vantagem, a televisão, o cigarro, o sexo, a mentira e o queijo minas. No fundo, acho que ele tinha razão. Embora eu deva confessar ao presente leitor que meus hábitos também não são nada ortodoxos; um pouco insanos, para se dizer o mínimo.

Apesar de alguns efeitos colaterais, as tais teorias nunca passaram de proposições inofensivas. Pelo menos até aquela enluarada noite de maio.

Ivete andava célere e sinuosa por entre as mesas na calçada. Enquanto caminhava, Otávio a seguia com os olhos bem atentos. Ela então encontrou uma amiga, a qual levantou-se para cumprimentá-la com um beijo no rosto. Que bunda! - foi a exclamação que veio do protagonista desta história. Nada de anormal para quem sempre se definiu como admirador dos belos e fartos glúteos femininos. Só que houve um momento em que as coisas começaram a se complicar. Eu quero essa bunda pra mim; disse ele com um olhar ávido e quase demoníaco. Quero essa bunda; repetiu em seguida. Quero, porque quero! Lembro-me que chegamos a encará-lo com uma certa surpresa, ainda que fosse uma surpresa complacente. Mas de repente ele se ergueu da cadeira em que estava sentado e se dirigiu à Ivete, a uns três metros de distância. A partir daí, o que testemunhamos foi pura mímica. Como não entendíamos o que era dito pelos dois personagens, resolvemos fazer troça da insólita situação. Será que Otávio propunha uma rapidinha à nobre dama, no banco de trás de seu Fusca 1300? Ou o nosso amigo estaria próximo de tomar um tabefe no meio da fuça? As elucubrações caíram por terra quando ele pareceu dar um cartão de visitas para Ivete, despedindo-se da jovem com um sorriso cordial nos lábios.

Na madrugada de sábado, nós nos encontramos novamente com Otávio. Ao abrir a boca, percebemos logo que ele mudava o viés de seu costumeiro discurso. Nada de pormenores históricos acerca da exata data de nascimento do sexo anal. O cara passou duas horas ininterruptas discorrendo sobre o derrière de Ivete. Era como se a moça, de uns vinte anos, pudesse ser resumida apenas por sua própria bunda. E veja que se tratava de um belo exemplar de mulher. Seus cabelos ruivos e cacheados vinham longos à metade de suas costas. O nariz afilado e o rosto fino lhe conferiam um ar de eterna adolescente, de eterna Lolita. Isso sem contar as insinuantes camisetas regatas que vestia e as justas calças que lhe contornavam as pernas mais que perfeitas. Ivete ainda estava na faculdade, mas faltavam somente alguns meses para a conclusão do curso de Relações Públicas. A moça tinha também um sorriso fácil e uma simpatia inigualável. É bem possível que seja bem-sucedida na profissão que escolhera ao final do colegial. Como se não bastasse, ela tocava piano e fazia curso de violino desde a tenra infância. Por essas e outras razões, repito: era uma injustiça resumi-la ao bumbum, mas Otávio insistia em fazê-lo, como é possível observar no próximo parágrafo.

Nunca houve no mundo uma bunda igual a de Ivete. Ela é a própria perfeição. Hoje, no início da tarde, tive a oportunidade de sentir sua textura e maciez. Com as mãos, com a boca, com os dentes, com o pau enrijecido. Juro que fiquei perto de um infarto por causa daquilo. Afinal, demorei cinqüenta e dois anos para contemplar uma coisa assim. Mas, como diz aquele antigo ditado, estou velho, não estou morto. Os glúteos de Ivete viajam pelo universo anos-luz à frente dos das outras moças. Nesta cidade mesmo, há mulheres que se assemelham a verdadeiros paquidermes no que se refere ao tamanho da bunda e das coxas. Essas não passam de meras reprodutoras, prontas para se transformarem em vítimas naturais do chauvinismo, mal que rege as relações humanas desde a criação. E por tocar num tema religioso, desconfio que o traseiro daquela menina seja um sinal de Deus. Um sinal como os Dez Mandamentos, entendem? Só que agora sem Charlton Heston no papel principal. É como se Alguém lá em cima nos revelasse que a sodomia enfim não figura mais no rol dos pecados cristãos. Tomara que esse sinal se espalhe por todas as crenças, a fim de que o homo sapiens descubra uma nova porta para a felicidade e para o prazer carnal. Quero me casar com ela. Quero acordar e saber que aquela jóia está ao meu lado, não junto de um desses fulanos que subestimariam o seu valor inestimável.

Infelizmente, o casamento deles nunca aconteceu. Mesmo com esse revés significativo, Otávio obteve a dádiva de contar com Ivete nas filmagens de seu último filme. Não existia roteiro. Não existiam atores. Nem diálogos. Somente a bunda de sua musa maior tomando a extensão do quadro. Nas mais variadas posições. Nos mais diversos movimentos. Nos figurinos mais insólitos - embora ela apareça nua em oitenta por cento da película. Otávio simplesmente plagiou a primeira cena de Brigitte Bardot naquele filme de sessenta e três, cujo nome não consigo lembrar. Depois, veio a seqüência em que Ivete é imortalizada caminhando desnuda na beira da praia, por uns trinta minutos, enquanto anoitece e vai sobrando apenas a sua silhueta brilhando contra a luz da lua cheia. Pronto, o trabalho recebeu o sugestivo título de Derrière. Há notícias de que os pais da atriz recém-convertida não aprovaram sua polêmica estréia nas telas de cinema. Por que só aparece a sua bunda, minha querida? - perguntou a mãe. O pai, por sua vez, ficou bastante inconformado e, num arroubo moralista do qual os pais são capazes, passou a arrancar, estraçalhar e pisar todos os cartazes do filme que encontrava. Nem os prêmios em Cannes, Berlim e Veneza colocaram um ponto final na rabugice do coroa.

Ao mesmo tempo em que o sucesso da fita se espalhava pelo exterior, aumentavam as intimidades entre Ivete e Otávio - perdoe-me aqui o eufemismo de mau gosto. Eles trepavam a qualquer hora, em qualquer lugar. Era a sodomia passando da teoria à prática. Chegava a hora de destroçar os tabus de séculos e séculos. Ela podia, inclusive, ter a petulância de dizer que o sexo anal fora inventado na Pré-História, bem antes da roda, que ele nunca discordaria. Estava embevecido com o formato daquele traseiro.

Porém, toda felicidade tem seu fim. Se não terminasse, não seria felicidade, seria rotina. No aniversário de namoro dos dois, Ivete tascou um beijo na boca de Otávio. Beijo apaixonado. O primeiro beijo. Mas após o inesperado ósculo, ambos decidiram que jamais se veriam de novo. Sentiram-se inexplicavelmente envergonhados e desistiram do casório que planejavam para dezembro.

Wednesday, June 01, 2005

Poesia desnuda

Daniel Soleil Noir

Não era inverno e o frio era incomum naquela época do ano. Entrava um vento encanado pela fresta da janela do quarto vazio e desolado. Aliás, as únicas coisas que marcavam presença naquele cômodo no início da noite eram a friagem que vinha de fora e aquele ar de desolação. Os lençóis amarrotados sobre a cama e os travesseiros jogados no chão apenas ressaltavam o clima que chegara na noite anterior e que não fazia qualquer menção de ir embora. Pelo menos até a chegada de João Pedro, que abriu a porta e pendurou sua gravata em volta da maçaneta.

Ele preferiu não acender a luz, no entanto. Contentou-se com a iluminação que provinha dos postes na rua, da lua crescente, dos carros que o tempo todo saíam ou entravam nas garagens dos prédios vizinhos. E mesmo que João Pedro não tivesse noção da hora, eram apenas nove da noite. Nem todo mundo havia chegado em suas respectivas casas. Assim como Lígia ainda não havia chegado ao apartamento. Talvez fosse o trânsito, imaginou, sabendo que se enganava pensando daquele modo. A discussão da noite anterior talvez fizesse com que ela jamais voltasse.

A barba de João havia se crispado com o vento, porém ele preferiu não cerrar totalmente a janela. Até pensou em tal possibilidade, mas nem cogitou levantar-se do colchão desarrumado, sobre o qual se sentara para descalçar os sapatos. Permaneceu ali, fumando um cigarro e batendo as cinzas sobre uma das meias que também tirara e que certamente nunca mais voltaria a usar. O maxilar chegava a oscilar com o frio, só que ele nem se importava; continuava quieto, em compasso de espera, aumentando a tortura ao condenar-se a não consultar relógio algum.

Lígia chegou justamente em um momento em que ele estava distraído, ou mesmo imerso no próprio sono, o que já seria suficiente para ensejar tamanha distração. Entrou calada e continuou dessa maneira enquanto ele se recompunha, passando uma das mãos sobre a roupa e a outra sobre o rosto amassado. João Pedro, por sua vez, também se manteve calado. E tentou buscar os olhos dela, mesmo que ao mesmo tempo colocasse uma boa dose de desdém nesse seu olhar.

Tanto silêncio o motivou a fazer alguma coisa. A se aprumar impaciente, a se levantar em seguida. A pegar o braço dela quando Lígia lhe deu as costas, evitando que os olhos de ambos se cruzassem a princípio. Tire as mãos de mim, ela disse. E dando-se conta que havia sido brusco demais naquele gesto, João recuou e continuou observando-a a uma relativa distância. Três palmos já era um espaço seguro tendo em vista o próprio tamanho do quarto em que estavam.

Lígia então ensaiou dizer mais alguma coisa. E antes que passasse da segunda frase, ele ordenou que ela se calasse. E desta vez João não se arrependeu do que acabara de fazer. Surpresa, ela esboçou uma reação mais dura, tendo como resposta a mesma hostilidade estampada na feição dele contraída. Agora sim estavam enfim unidos em uma reação comum, unidos em um sentimento que os igualava naquele instante, ainda que fosse algo diferente das juras de amor de um passado remoto, que pareciam ter deixado para trás - e para sempre - na noite passada.

Você sempre tem razão em tudo o que faz. Em tudo o que diz. É um poço de racionalidade. Por que é errado tudo o que faço, ou tudo o que digo? Não sei, mas pelo menos essa é a impressão que você me dá. A impressão de que todos os meus atos e que todas as minhas palavras são totalmente instintivos e que, por isso, não lhe servem para nada. Por que os meus instintos valem menos que a sua pretensa razão? É possível que nem você consiga articular bem essa idéia. Que demore tanto para responder que descubra no caminho que essa sua vida nem vale muito a pena.

Ela ficou contrariada com o súbito discurso do cônjuge. Mas pela primeira vez recuou o olhar, não quis responder ou retrucar as acusações tão prontamente. E ao se perceber acuada, começou a tatear a parede do quarto, querendo achar o interruptor de luz no intuito de acendê-la. Pensou que assim conseguiria se recuperar da momentânea condição de inferioridade diante dos argumentos de João. Ele, contudo, agarrou novamente o braço dela, desta vez com plena convicção do próprio ato, com a plena convicção de que não poderia permitir que ela virasse o jogo a seu favor.

Praticamente desistindo da batalha, Lígia tascou um beijo na boca de João, boca que ainda pairava no ar, entreaberta e contraída pela raiva. Ela mantinha de muito tempo - havia cerca de uma década - a crença adolescente e imatura de que contra um beijo jamais existiria argumento. Era a sua maneira de flertar com o subjetivo, já que havia acabado de devotar sua vida a tudo o que fosse certeza, a tudo que fosse científico, racional, minucioso, filosófico e objetivo.

Mesmo assim, João continuou. E sem dizer palavra, lhe propôs um jogo de verdade. Largou o braço dela e passou a desabotoar a camisa com que estava vestido. Depois, tirou a calça. Mas a cada a peça de roupa que arrancava do corpo, até com certa violência, tomava o cuidado de dar um passo para trás em relação a Lígia, de modo a aumentar a distância entre os dois. Não desejava tomar o corpo dela logo que terminasse de se despir, como já fizera antes naquele mesmo quarto. Queria saber apenas qual dos dois chegaria a admitir primeiro toda a sua fragilidade diante do outro.

Se seria ele... ou se seria ela...

E pediu que ela fizesse o mesmo. Lígia não chegou a compreender até onde João queria chegar. Até onde queria levá-la. Mas passou a tirar também a própria roupa. A sentir na pele a friagem que insistia em entrar pela janela. Abdicou da camisa que vestia, da calça, do sutiã que jogou com cuidado sobre a cama. Os pêlos de seu corpo se crisparam de repente e ela cruzou os braços sobre os seios, em uma tentativa frustrada de se proteger do frio. Viu, porém, que fazer isso era burlar uma das regras do jogo e deixou com que os braços lhe caíssem em torno da silhueta desnuda.

A única fonte de calor naquele ambiente era o rosto de João, de um avermelhado que contrastava com sua barba preta e mal aparada. O pênis, entretanto, apesar de exposto, ainda se mantinha derreado. Não fizera menção alguma de se dilatar, de querer alcançar o ventre de Lígia, que ainda se mostrava tão próximo e desprotegido. Permanecia quieto, murcho, embora essa discrição não parecesse advir do mesmo homem que sempre fizera questão de ostentá-lo como a melhor parte de si, a única que talvez valhesse a pena ser usada quando fugia das coisas do dia a dia.

O corpo de Lígia também aparentava uma fragilidade excessiva. Não porque suas pernas tremessem de forma quase imperceptível. Ou porque os mamilos intumecidos dessem uma idéia do frio que sentia. O fato era que pela primeira vez em sua vida ela não se deparava com um João ávido por sentir com os lábios a temperatura de sua pele, pronto para lhe tomar a cona de assalto, mesmo que ela se esquivasse no início, e fosse cedendo aos poucos, perdendo espaço mais a mais, e perdendo um pouco aquele jogo cotidiano no qual haviam se envolvido desde antes do noivado.

Só que o jogo naquela noite era outro. Incluía vê-lo fazendo uso daquela nova espécie de desprezo, sem esboçar nenhuma reação de cunho sexual ou qualquer demonstração de afeto. João apresentava apenas um olhar que a enfrentava, que ironizava a própria presença dela e o fato de que Lígia não se sentia nada confortável quando obrigada a se despir de tudo e a escancarar a própria essência diante de João. Ele, por outro lado, mesmo mantendo-se calado, insistia que era um homem feito somente dessa essência e que, por esse motivo, contava com uma maior facilidade em se despir das máscaras que a vida lá fora impunha a ambos, sem excessão.

E assumindo a derrota, Lígia aproveitou um momento de distração para abraçá-lo pelas costas, colando-se à carne branca e crua de João. E para evitar que ele a rechaçasse, ela cravou as unhas no peito dele, não a ponto de lhe tirar sangue, mas com a intenção de lhe provocar uma reação mais intempestiva, que os tirasse daquele transe que já se estendia madrugada a dentro. E ele permitiu-se beijá-la, pois agora sim ela acabara de se entregar aos seus instintos mais recônditos.