ironia, ainda que tardia

Monday, June 15, 2009

Benigna


A água do lago parece coberta por uma lâmina de gelo. O frio de inverno está lá, apesar do dia de sol que preenche a paisagem com uma claridade benigna. A montanha ao fundo esconde o horizonte de nossos olhos e testemunha do alto as poucas e brancas nuvens que teimam cruzar o céu azul.

Há um pouco de ironia nesse dia perfeito para um cartão-postal. Quem o visse em uma foto talvez nem desconfiasse do frio abaixo de zero. O vento, no entanto, corta as maçãs do rosto de Alice, única parte desprotegida de seu corpo quase todo agasalhado. Mas ela sorri, faz pose para a foto com as mãos escondidas nos bolsos de uma jaqueta de náilon, cor bege e detalhes em pele sintética na cor marrom.

Neve, só num ponto distante no cume da montanha. Lembra até uma ponta de marshmallow num doce de chocolate. Apesar do frio, o verde da vegetação ao redor ainda resiste e ajuda a dar mais colorido ao cenário. O sorriso de Alice na pose para a foto, diante de tudo aquilo, revela um encanto quase infantil.

Seus olhos azuis até se confundem com a própria paisagem. Eles se destacam em seu rosto branco, abaixo das sobrancelhas claras e dos cabelos castanhos, lisos, devidamente protegidos dentro do capuz da jaqueta. Seu semblante se alterna entre alguns sorrisos de menina e outras feições simpáticas.

Alice viajou mil quilômetros para passar suas férias longe de casa, do trabalho e do trânsito da capital. Embarcou sozinha na manhã de uma segunda-feira, com bagagem suficiente para apenas uma semana fora. Levou também um livro para ler no avião, algumas músicas no iPod e um diário para registrar fatos e sensações do período em que estaria em outro lugar.

Antes de sair, deixou um bilhete para a amante, debaixo de um imã na porta da geladeira. Havia escrito algumas recomendações para o período em que estivesse ausente, instruções para o pagamento das contas que chegariam naquela semana e declarações de amor em frases tão sutis como prosaicas.

Soledad ficou surpresa ao acordar sozinha na cama. Esperava encontrar a boca de Alice na altura de seu ombro, assim como a respiração morna e o cheiro de xampu e condicionador que se somavam e persistiam sempre nos cabelos dela. Mas Alice não estava mais lá. Em seu lugar, apenas a temperatura que seu corpo deixara sobre o lençol durante as horas de sono. Sentiu falta também de um afago, de um beijo...

Levantou-se então e não deu mais do que dois passos até o banheiro do apartamento. Soledad jogou uma água gelada no rosto, escovou os dentes com pressa e dirigiu-se à cozinha, onde planejava roubar um iogurte de Alice para comê-lo de colher enquanto assistisse ao primeiro telejornal da tevê.

Foi então que se deu conta do bilhete. Imaginou, inicialmente, que se tratava de uma despedida, um rompimento sem muita coragem para dizer certas coisas na cara. Sempre temeu os humores de Alice, que se alternavam inúmeras vezes ao longo de um mesmo dia.

Ao perceber que não era nada disso, que se tratava apenas de mais uma viagem, ficou mais tranquila, abriu um saco de torradas e ligou a televisão da sala. À noite, quando voltasse do trabalho e ligasse o computador em casa, receberia a foto de Alice por e-mail. E talvez sequer se perguntasse quem seria, afinal, o autor daquele registro.

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