ironia, ainda que tardia

Sunday, October 08, 2006

Tenochtitlán

Daniel Soleil Noir

Beijaram-se. Assim, repentinamente. E como se talvez se conhecessem. Como se o fato de já se conhecerem de vista fosse o bastante. Mas beijaram-se. E naquele átimo sequer houvera tempo para que se olhassem nos olhos. O beijo durou pouco, é verdade. Pelo menos o primeiro. Ela queria tomar o rosto dele em suas mãos e ter a mínima idéia de como era o seu olhar. Ele, por sua vez, queria continuar a beijá-la, mas conteve-se logo que os lábios de ambos se descolaram enfim.

Foi só nesse instante que ele teve noção de como era ver o tom da pele de Alice assim tão perto. Uma pele de terracota, esculpida pelos astecas em tempos imemoriais. Traços que já tivera a oportunidade de contemplar bem antes, mas que agora podia tatear com a suavidade da ponta dos dedos. Era uma textura completamente diferente daquilo que conhecera até então. O mais impressionante, porém, era a temperatura que sentia através das palmas das mãos abertas. Um calor para o qual não conseguia encontrar adjetivos.

Embora apenas estampasse um sorriso nos lábios recém-beijados, Alice por enquanto guardava em si uma sensação vitoriosa de que havia conseguido. Havia conseguido aquele beijo, ainda que na verdade quisesse bem mais. O que parecia impossível, no entanto, tornou-se presente tão de repente que talvez fosse difícil de acreditar. Ou mesmo especular assim o que poderia vir depois. O que viria depois daquele beijo.

As mãos dele então escorreram pelo corpo dela. Primeiro, vieram os ombros de Alice. Foi quando pôde se deter nos olhos dela por mais alguns instantes. Depois, desceu pelos braços, passou por trás dos cotovelos esticados, chegou a suas duas mãos. Era a hora de sentir a espessura dos dedos, daqueles dedos finos que há poucos minutos estavam em seu rosto áspero, em sua face feita de cedro. Não se contentou, contudo. E, quase que por um passe de mágica, alcançou-lhe os quadris.

Alice escolheu se deixar dominar por ele. Chegou a colar seu ventre junto ao abdômen dele. E ao confirmar que seus corpos eram mesmo tão conformes, teve uma rápida alegria, o suficiente para que pudesse esticar o sorriso estampado em sua feição. Seu olhar, por outro lado, continuava a esperar por uma nova atitude daquele homem. O que ele poderia dizer, agora que estavam tão próximos? Ao mesmo tempo em que a curiosidade a assaltava, tinha um certo medo do que pudesse dizer. Temia que ele se precipitasse em se despedir.

Só que ele não ousou dizer nada. Uma palavra sequer. Tomou partido mais uma vez daquele primeiro beijo para beijá-la de novo. Desta vez, queria se deter por mais tempo dentro daquela boca, com a única finalidade de subjugá-la. Ele queria que a sua iniciativa em beijá-la minimizasse a importância da coragem que ela teve em se insinuar naquelas semanas. Queria, em suma, mudar uma possível relação que já pudesse se estabelecer entre os dois a partir dali.

E seu plano surtiu efeito. Enquanto estava envolvida em mais aquele beijo, Alice procurava sentir em seu próprio paladar a doçura da boca dele, o aroma leve do seu hálito. Ele, ao contrário, sentia o sabor apimentado na ponta daquela língua, que fazia subir a temperatura da própria respiração. Era quente o ar que soltava pelas ventas. Bem como era quente o ar que tragava a partir da respiração de Alice, a injetar-lhe um novo ânimo dentro do peito. Mas ao se dar conta daquele afã, quis saber a razão daquilo, mesmo que para isso precisasse prescindir das palavras. E, entregue a essa curiosidade, deixou de ser agente do próprio destino.

Ainda se beijavam quando uma das mãos dele se fez valer daquele momento para invadir a porta de seu ventre. Era algo inimaginável, pelo menos a princípio, em plena luz do dia, mesmo que ninguém fosse capaz de flagrá-los no meio daquela ponte. Ela se surpreendeu e respondeu àquele gesto com um frêmito rápido e com as unhas afiadas a ferir-lhe os músculos retesados naquele abraço. Nem com isso ousou interromper o beijo. Sentiu, na verdade, um tempero diferente se metendo na mistura que faziam no cair daquela tarde.

Não havia mais como negar que havia uma curiosidade também da parte dele. Uma curiosidade na nudez de Alice. Uma curiosidade que logo se transformaria em desejo. E que assim se transformou. E foi o desejo que o levou a alcançar-lhe às nádegas, a apertar-lhe a bunda como se estivesse a colher um pomo macio. A cintura, junto à palma da outra mão, parecia pulsar em furor, como que para conduzi-lo à loucura. Pois a loucura voltaria a colocar Alice em vantagem e lhe restituiria a sagrada condição de quem havia começado a desejá-lo em segredo.

Ao notar que havia avançado com demais insensatez, ele voltou a se conter e optou por interromper aquele beijo. E quis saber até onde tinha chegado por meio da reação que se inscrevesse no rosto de Alice. Mas ela refletia uma felicidade incontida, sorria como que para convencê-lo de que era exatamente isso o que ela queria. E que o mais justo seria parar de sonegar-lhe o corpo, o que ela mais almejava desde que haviam se conhecido.

Insólita, aliás, também foi a forma como ambos se conheceram. Alice surgiu de repente, vinda de algum lugar acima da América Central. Ele se surpreendeu logo com sua presença, a qual julgou como deveras insidiosa. Insidiosa o suficiente para colocá-lo em tentação. E era justamente em tentação que evitava cair a cada dia que se viam, a cada dia em que ela se insinuava com sua alegria desinibida, com suas palavras quase sem medida alguma.

E se fosse pecado o nome da vontade de beijá-la, uma vontade que também chegou a guardar em segredo? Por que se arriscar se não existia certeza de que haveria futuro depois daquele beijo? Precisava antes responder a tais indagações particulares, pensar e refletir um pouco a respeito de tamanha tentação. Só desistiu de fazer perguntas quando percebeu que as respostas de tantos questionamentos se encontravam na sinuosa anatomia de Alice.

Era hora de despi-la. De tomá-la para si. Alice se entregava, sem privar-se, porém, da oportunidade de permanecer ativa, de deixar nele a impressão de que a iniciativa continuava sendo sua. E que sendo apenas um mero objeto, ainda demoraria um pouco mais até que descobrisse a real origem do desejo de Alice.

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