ironia, ainda que tardia

Wednesday, October 25, 2006

A Ilha dos Símios

Daniel Soleil Noir

A nau continua encalhada sobre a areia da praia. As velas ainda insistem em balançar com o vento. Da mesma forma, tremula a bandeira hasteada em um dos mastros no convés. O pendão, aliás, parece tripudiar da má sorte daquela embarcação - assim como as aves, que chegam a se empoleirar sobre a amurada enquanto os urubus fazem a ronda à procura dos mortos. E embora o mau cheiro realmente os atraia, é mesmo inútil continuar procurando.

Único que restara desde o meio da travessia do oceano, o Capitão agora repousa sentado a uma pedra, de frente para o mar. Mas ninguém que o tivesse visto na hora do embarque seria capaz de reconhecê-lo, agora que abdicou dos trajes que indicavam sua patente. Da farda, sobrou apenas a calça branca. Os pés descalços já estão sujos de areia. E sem camisa, vem notando com alguma curiosidade sua semelhança com os macacos que vão pulando de galho em galho.

O Capitão tem a pele impregnada por um forte cheiro de suor. Está queimado também graças ao sol forte indicando o meio-dia. A fome ronca em seu estômago, mas ele ainda não cogita procurar algo que o alimente. Os víveres do navio já se acabaram todos. Nem mesmo as reservas sobraram dentro da despensa. E mais: nem mesmo os macacos trepados nas árvores, curiosos com sua presença, serviam para instigar-lhe o apetite.

Ele prefere dirimir a dúvida responsável por deixá-lo prostrado sobre aquela pedra. Não que não tenha mais forças para se mexer. Ainda lhe sobraram algumas. E a confiança na força da própria alma faz com que ele ainda não se desespere. Sabe que sua obstinação nesse caso é tamanha, suficiente para que encontre um modo de continuar sua viagem, rumo aos saques que ainda pretende empreender do outro lado do mundo.

Aos poucos vai se lembrando de cada momento da viagem. Sua tripulação era composta por trezentos homens, escravos em sua maioria, além de um exército mercenário pronto para deixar um rastro de morte pelas cidades por que passasse. Cabia aos escravos o devido armazenamentos das mercadorias roubadas, com um acondicionamento que permitisse a manutenção de seu perfeito estado quando o navio regressasse ao porto de onde havia partido.

De repente, o Capitão é surpreendido pela memória de que havia sido acometido por uma forte febre na primeira parte da viagem. Sentira-se mal, nauseado, e não entendia direito a razão daquilo diante da vasta experiência que tinha nos sete mares. Quase tombou para um dos lados, mas antes de cair sobre o convés, teve tempo de segurar-se na amurada, distraindo-se por um rápido instante com a transparência das águas naquele ponto do oceano. Pôde até ver um cardume viajando junto ao casco duro da embarcação.

Ao se recuperar, pelo menos aparentemente, voltou a olhar para o convés. E percebeu assim o rápido desaparecimento de sua tripulação. Seu navio estava deserto, sem uma alma sequer que lhe pudesse fazer companhia, ou mesmo obedecer a suas ordens. Parecia conduzir um navio fantasma, que singrava o mar imerso na solidão dos oceanos, sem nenhuma perspectiva de emergir de novo. Restava-lhe apenas restabelecer seu comando e atracar em algum lugar.

Mas qual teria sido a razão daquele desaparecimento em massa? Teria sido Deus o responsável por içar aquelas almas e lhe impor o castigo por tantos crimes? É o que se pergunta agora, que está em terra firme. Aproveita também para observar o navio à distância. A nau parece mesmo envelhecida, talvez a carcaça do que teria sido um dia. De longe, chegava a lembrar ainda o esqueleto de um cetáceo que também pudesse ter encalhado naquela praia.

Entre tantas indagações, a única certeza que o Capitão possui diz respeito à necessidade de deixar aquela praia, ir embora e retomar a sua rota. Mas precisa, no entanto, encontrar um modo de recrutar uma nova tripulação, para que siga viagem com a certeza de que conseguirá se lançar aos saques que ainda deseja fazer. Precisa, sobretudo, de uma idéia que possa colocá-lo de frente para a solução daquele maldito impasse que só o atrapalha.

À medida que o tempo passa, o Capitão vem sendo tomado pela sensação de estar perdendo aos poucos a sua condição humana. Bastam algumas horas e o cair da tarde para que ele já se sinta como se fosse um completo animal. Ao se dar cada vez mais conta de que está sozinho, e sem explicação para tal, o Capitão sente que é tão bicho quanto as espécies que se escondem em meio à vasta flora que o rodeia naquela desconhecida ilha deserta.

Até o ritmo de sua respiração começa a mudar, tornando-se um resfolegar raivoso de quem precisa atacar, antes sem saber exatamente o que. Sua derme já está tão dura que parece coberta por escamas, enquanto os pêlos que lhe cobrem essa mesma pele transformam-se em palha seca, pronta para forrar o chão das estrebarias das terras onde nasceu. E no lugar dos cabelos, que antes escorriam desgrenhados até os ombros, empapados de suor, existe uma crina endurecida, loira e mal-cheirosa, nojenta de tão oleosa que se apresenta.

De pé, o Capitão se embrenha no meio do mato à caça de uma solução. As folhas e os galhos nos quais esbarra pelo caminho ajudam a rasgar ainda mais sua calça branca, encardida pelo tempo em que passara sozinho cumprindo as funções dentro do navio. Passando por entre as árvores, o Capitão muda sua manobra diversas vezes, sempre levado por falsas impressões de que também está sendo seguido, de que poderia ser a caça de algum predador.

Eis então que o Capitão tem o pescoço assaltado por um chipanzé da região. Ambos começam a se debater, tal é a fúria incontrolável daquele homem. Ele chega a se livrar do bicho, que continua a pular ao seu redor. É quando percebe que, na verdade, é tão símio quanto o animal a sua frente. E que isso bem que poderia ser útil - decide, em um instante definitivo de loucura, formar sua tripulação com os macacos que infestam a orla.

Ele exerce um efeito quase que messiânico junto aos símios. Os macacos se movem de acordo com as suas coordenadas. Suas palavras já não são palavras, apenas grunhidos acompanhados por gestos bruscos, passos decididos, mesmo quando seus pés afundam rijos na areia da praia. Estão todos prontos para o embarque enquanto, sem saber, estão apenas fugindo... E pior do que ir de uma só vez para o inferno é simplesmente fugir assim do paraíso.

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