ironia, ainda que tardia

Thursday, December 07, 2006

Epifania

Daniel Soleil Noir

O botão aberto da camisa revelava um pouco mais de sua pele branca e dos pêlos que cobriam boa parte de seu peito. Chovia forte naquele início de noite, o suficiente para deixá-lo ensopado - o que só não aconteceu porque já havia encontrado abrigo sob o toldo de uma loja fechada. O que não evitou, contudo, que uma gota um pouco mais furtiva se precipitasse através de um furo minúsculo aberto naquela prosaica superfície de PVC. E que essa mesma gota escorresse pela fenda da camisa como se fosse uma gota de suor.

Estava calor, é verdade. E sua transpiração contribuía para que a camisa se colasse ainda mais ao corpo. Mas isso não chegava a incomodá-lo. Diante de seus olhos escuros, os carros se amontoavam enquanto esperavam que o farol adiante se abrisse, enfim. O problema era que o trânsito já havia se tornado um caos, e mesmo com o semáforo aberto não havia quem conseguisse se deslocar mais que alguns metros sobre o asfalto úmido e cravejado por gotas cada vez mais pesadas. Era aquele transtorno todo que o incomodava de fato.

A chuva forte o mantinha ilhado sob aquele toldo. Não poderia sequer fazer menção de dar um passo à frente, sob o risco de ficar encharcado, sem a mínima perspectiva de chegar ao carro, guardado em um estacionamento, um quarteirão mais à frente. Mas já se conformava em ficar ali parado, sem guarda-chuva, assistindo à confusão de luzes que provinha dos faróis dos carros que iam e vinham, mão e contramão, a passos de cágado sobre o leito da rua. Pelo menos tinha a sorte de não dividir abrigo com nenhum outro transeunte.

A calçada estava vazia. Escura. O comércio havia fechado pontualmente às 17 horas, quando as nuvens de chuva apenas começavam a escurecer o céu daquela segunda-feira. Foi o momento também em que as pessoas começaram a descer dos prédios ao redor, gente que se precipitava em direção aos pontos de ônibus, aos táxis que ainda passavam, e aos estacionamentos que faturavam alto pelo bairro. Mas nessa hora ele ainda estava no escritório, entediado, mantendo-se acordado (e vivo) sob efeito de um copo de café.

A solidão debaixo da tempestade era até, de certa forma, um tanto agradável - bem como a brisa que o tempo soprava e que refrescava ainda mais o seu rosto calmo e sem expressão. Funcionava, inclusive, como uma ilha de tranqüilidade em meio ao niilismo que se apoderava quase que totalmente de seu cotidiano infeliz. Afinal de contas, sua vã filosofia já reconhecia, havia algumas semanas, que seu modo baço de enxergar o mundo não permitiria que ele pudesse ver as coisas de uma maneira um pouco mais otimista, quem sabe.

E essa boa dose de niilismo só não era trágica porque ele não era alguém que se levava a sério propriamente. Tinha a plena consciência de que a sua própria vida não era mais que uma quimera, talvez uma história para ser contada com muita ironia, como se pudesse ser o bobo da corte de si mesmo. É possível que esta fosse a justificativa mais racional para que, apesar de tudo, ainda mantivesse estampado em seu rosto jovem o sarcasmo de um meio-sorriso preenchido pelo cinismo com que enxergava as pessoas e as coisas.

Houve uma hora, porém, em que uma alma veio lhe fazer companhia. Era ela... arriscando um trote curto, indo de um toldo a outro na tentativa de se proteger, já que também havia esquecido o guarda-chuva. Quando ele notou de quem se tratava, deixou os pensamentos de lado e logo mudou sua fisionomia. Começou a tratá-la com a deferência de sempre, com a qual já estava acostumado a lidar com a maioria das pessoas. Só que, de repente, também se viu envolvido naquele sorriso dela, que aos poucos ia quebrando a monotonia.

À medida que iam conversando, ele foi notando que alguns pingos de chuva haviam caído sobre os ombros descobertos dela. Os cabelos, no entanto, mantinham-se secos em sua maioria, apesar de alguns terem se molhado no curto caminho que empreendera até ali. Havia se protegido, aliás, com uma pasta recheada por coisas do trabalho. E aos poucos ele foi percebendo coisas que nunca durante o expediente seria capaz de notar. Detalhes que o cotidiano trata de deixar ainda mais imperceptíveis.

Ela vestia uma camiseta azul-marinho sobre sua pele morena, em um contraste capaz de transformá-la quase em uma epifania. E talvez ela fosse realmente uma epifania. Uma aparição que veio sem aviso no meio daquele temporal que não dava mostras sequer de que uma hora fosse terminar. Enquanto a observava, absorvido por aquela contemplação, perguntava-se como permitira-se se enredar em sua conversa, em uma simpatia incomum na maioria dos demais exemplares de sua espécie – ao menos naqueles que também conhecia.

A coincidência era que ela também estava a observá-lo. Olhava para a fenda aberta na camisa. Para os cabelos molhados e colados junto à testa. Para o sorriso irônico e ambíguo que lhe conferia e aumentava ainda mais a aura de mistério que fazia questão de continuar mantendo em torno de si. Até mesmo a barba incipiente, que já acinzentava-lhe a feição àquela altura da noite, chamava sua atenção. Indagava-se quem seria aquele cara com quem convivia todos os dias, mas que não permitia que lhe perscrutassem nada da personalidade.

Aos poucos a intensidade da chuva foi diminuindo. O que chegou a entristecê-la em um primeiro instante. O sorriso, que antes parecia tão vivo, ia perdendo algumas cores. Não sabia, entretanto, o efeito que havia causado em seu interlocutor. Ainda não tinha consciência de que havia acabado de salvá-lo da desesperança de minutos atrás. O que só foi perceber quando um dos braços dele conseguiu cingir sua cintura; quando a boca dele enfim alcançou a sua.

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