ironia, ainda que tardia

Friday, December 22, 2006

Fascínio

Daniel Soleil

Tinha a pele untada por um sebo oleoso por causa do calor daqueles dias. Possuía o peito ungido por uma gota de suor que escorria por sua carne. Já era tarde da noite e ainda não conseguira dormir. Seus temores não o abandonavam nem àquela hora da noite. Revirava-se dezenas de vezes sobre o lençol antes de tomar coragem e enfim poder fechar os olhos - e esvaziar a cabeça dos maus pensamentos que o assolavam cada dia mais um pouco.

E quando uma espécie de paz parecia assaltá-lo, e uma boa dose de sono lhe pregava as pálpebras, o som de uma buzina ou de uma freada mais brusca interrompia tudo e fazia com que permanecesse irrequieto sobre o colchão de sua cama. O travesseiro, ensopado com sua transpiração, já não servia mais como um bom conselheiro. Seus odores, que ali se acumulavam, eram mais uma espécie de veneno do que algo realmente inofensivo.

Seu corpo parecia febril, embora não padecesse de uma febre física. Mas não era místico o suficiente para que admitisse que sofria com uma febre que provinha do seu espírito, na verdade. O desânimo provocado por aquele calor lhe tirava, inclusive, a vontade de se levantar e abrir a janela, o desejo de minimizar a falta de ar que também sentia. Não havia nada que lhe pudesse refrescar a derme àquela hora da noite – muito menos refrescar-lhe a alma.

O incômodo era tanto que um princípio de câimbra começava a se insinuar na batata de sua perna direita. Já não poderia se levantar da cama, mesmo se quisesse. Os outros cômodos do apartamento se tornavam distantes, o que desencorajava qualquer intenção de sair daquele quarto, buscando algum refúgio em um copo de água gelada, ou mesmo na brisa suave que soprava na fina fresta que deixara aberta na porta da sacada da sala.

Aquela insônia estava mais para algum tipo de enfermidade. Uma enfermidade que, além de lhe consumir o corpo, consumia-lhe a essência propriamente. Mas essa mesma insônia talvez fosse menos a causa que o efeito em si. Havia um motivo para que aquele calor viesse a incomodá-lo mais do que nos outros anos. Era um motivo que provinha da pele quente de Eva. E que, mesmo em pensamento, lhe aquecia a pele, o sobrecenho - o corpo todo, em suma.

Tinha plena noção do que sentia, mas estava aprisionado na intensidade desse sentimento. Não que não pudesse revelá-lo, pois se tratava de algo mais evidente do que qualquer outra pessoa pudesse imaginar. O problema estava, ao contrário, na dificuldade de consumá-lo. Seu coração a desejava - porém também tinha plena consciência de que aquela era uma paixão interdita, um modo imponderável de sentir alguma coisa por alguém.

Aquele era sim um modo insólito de sentir o que sentia. Mas admitia que o simples fato de vê-la já lhe servia para que começasse a repor as energias do corpo. Este ciclo então se completava quando as palavras dela passavam a pairar em torno de seus ouvidos – palavras de uma alegria desmedida, contornadas sempre por seus lábios em forma de sorriso. E eram as horas em que se abstinha daquela presença a possível razão de sua insônia.

Nas noites em que o incômodo era menor, ele gostava de lembrar da primeira vez em que quis beijá-la. Era o seu atalho para que sonhasse com ela e se redimisse da inércia de não beijá-la de fato ao longo do dia.

Lembrava-se que era uma segunda-feira e que ela usava um batom cor de chocolate - pelo menos era assim que identificava aquela cor. Sabia que estava com os olhos cravados naquela boca, mas não chegava a se censurar por parecer tão óbvio. Afinal de contas, notava, por sua vez, que ela também prestava uma certa fruição ao castanho dos seus olhos, ao modo como a observava, estampando sempre uma safada ironia no semblante.

Percebeu uma vez, no entanto, que ela também se aprisionava à sua maneira. Que ela queria lhe roubar um beijo, mas sentia não ter coragem suficiente para tal. Sabia que tinha a loucura inscrita em sua essência, mas já estava devidamente domesticada àquela altura do campeonato. Não deixaria que seus instintos, aliados a uma boa porção de feromônios, tirassem-na do sério com tanta facilidade. Preferia guardar os arroubos em sua imaginação, apenas.

Não que não chegasse a perder o controle algumas vezes. Reparava com atenção demasiada um pedaço do peito dele que se abria, e que a fresta da camisa entreaberta revelava. Mesmo o som do coração em disparada chegava a ser ouvido por algum tipo de sonar que se escondia por trás da intuição do ser amado. Mas foi num dia em que ousou pousar a mão sobre o braço dele que ficou nítido que ambos tinham mesmo intenções recíprocas.

O que ele achava mais bonito em Eva era aquele sorriso, um humor quase sem limite. Ela não se resumia, todavia, apenas a esses atributos mais subjetivos. Mas ele também admirava o jeito como ela se entregava às responsabilidades, o eterno desejo de desbravar o mundo, embora soubesse muito pouco a respeito daquela nova musa. Sua percepção, contudo, não se restringia ao que pudesse ver, mas também ia de encontro ao que ela guardava nas partes mais recônditas de si mesma. Como o jeito de criança que às vezes emergia...

Ambos compartilhavam de alguma espécie de fascínio. E sabiam que contra esse fascínio nunca haveria argumentos. O único problema é que nenhum dos dois tivera coragem até então para transpor a fronteira que transformasse toda essa quantidade de fascínio em realidade. Pareciam fazer questão de que isso ficasse unicamente a cargo do destino. Quem sabe? Nem eles sabiam, na verdade. Assim como ainda não tinham idéia de que tanto suor e tanta loucura seriam transformados, um dia, em amor – e que esse amor, hoje tão público e notório, seria enfim um fato consumado
.

0 Comments:

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]



<< Home