ironia, ainda que tardia

Tuesday, September 19, 2006

Lascívia

Daniel Soleil Noir

Até hoje ninguém sabe a razão pela qual seus pais escolheram seu nome. Ainda não havia como antever seu destino quando não passava sequer de uma menina. Menos ainda prever o que seria quando era apenas uma frágil recém-nascida. A única coisa que se sabia, porém, é que havia sido batizada com o nome de Lascívia. E que assim seria chamada pelo resto da vida.

Mesmo quando se tornou uma mulher, Lascívia manteve a aparência de menina. Era preciso erguer a mão em forma de pala de modo a proteger o rosto dos raios do sol forte. Existia, contudo, além de toda sua delicadeza, atributos que faziam jus àquele seu nome incomum. Pois mantinha, à flor da pele, uma sensualidade que extrapolava os limites da normalidade.

O maior desejo de Lascívia, além daquele já implícito em seu nome, era o de viajar o mundo. Queria conhecer toda a sorte de lugares, mas dava preferência às cidades litorâneas. Não era segredo para ninguém seu gosto pela areia da praia, sua vontade de brincar com as ondas que iam quebrando ao longo da orla, saindo sempre com a pele salgada pela água do mar.

Numa dessas viagens, Lascívia conheceu Esteban. Ele a observava de longe, enquanto ela tomava sol deitada em uma cadeira de praia. Vestia um biquíni vermelho que combinava com o chapéu que usava, com faixas que alternavam vermelho e amarelo. Sua pose era digna de uma propaganda de protetor solar. Os óculos escuros e o meio-sorriso nos lábios davam juntos a idéia de um olhar sem foco, como se ela encarasse aquele belo dia de sol de um jeito blasé.

Ao vê-la, Esteban encontrou motivos de sobra para querer conhecê-la melhor. Mas precisava demonstrar esse interesse despertado tão de repente. Acreditava poder angariar um pouco da coragem necessária por intermédio de um copo de bebida. A cada dose, seu olhar se tornava cada vez mais insidioso, à espera que ela também pudesse olhar para ele.

Já eram quase duas horas da tarde quando Lascívia se aproximou do balcão do quiosque. Continuava com o chapéu, mas usava também uma canga amarrada com um nó improvisado sobre os quadris. Ao perceber a presença da jovem, Esteban logo se chegou a fim de puxar conversa. De onde estava, no entanto, já havia como sentir o cheiro pervertido que provinha daquele corpo. Um odor lascivo que não se fazia de rogado em atraí-lo ainda mais.

Apresentou-se como Santesteban, na verdade: Jose Lopez Santesteban. Natural daquela ilha. Usou como artifício a mão estendida como que para um cumprimento, um gesto que tinha também um belo toque de ironia, acentuado ainda mais por um sorriso sacana - o qual não fazia questão alguma de esconder de sua presa. Ela aceitou o cumprimento, e estendeu o braço para apertar a mão daquele que não passava, até então, de um desconhecido.

Até que chegou o momento de também dizer seu nome: Lascívia.

A pronúncia daquelas sílabas produziu em Esteban o mesmo efeito que já havia produzido em outros homens. Ele não quis se intimidar, a princípio, mas já estava intimidado. Precisava esconder, sobretudo, a surpresa de ouvir tal palavra quando menos esperava. A causa daquela sensação estava principalmente no fato de não saber se já se tratava de um convite (bastante acintoso, aliás), de uma brincadeira ou de uma súplica. E foi essa ligeira confusão a causa para que ele se detivesse por alguns segundos antes de retomar sua corte.

Lascívia, por sua vez, gostava do efeito que causava. Sabia exatamente o instante em que passava a ter o homem que quisesse na palma de sua mão. Todos se transformavam em verdadeiros adolescentes, à mercê dos arroubos de perfídia que pudessem tomá-la a partir dali. E era isso o que ela observava na reação de Esteban. Aquele era o exato motivo de seu deleite. Vendo a cena quase como se assistisse a um cão com o rabo entre as pernas.

Isso não significava, no entanto, que Lascívia fosse sonegar sua nudez perante Esteban. Ao contrário. Dentro de alguns instantes, estaria prestes a se despir, enfim. Mas queria ver completo o espetáculo de sua sedução. Precisava criar antes a impressão de que estava a dispensá-lo ao mesmo tempo em que desejava atraí-lo. E que, dessa forma, ele permanecesse atrás do seu cheiro, da textura de seus cabelos, da temperatura de sua pele.

E essa foi a hora em que Lascívia decidiu ir embora. Deixando antes seu rastro impuro sobre a areia. Bastou alguns passos, onde a praia já parecia deserta, para que desvelasse os seios. Mais alguns metros à frente e chegou a vez da canga escorrer a partir de suas coxas brancas. E fazia tudo sem dispensar o cuidado de manter-se na alça de mira de Esteban. Sempre em seu campo de visão. Tinha ciência de que aquela era a hora de atraí-lo e apenas aguardava que ele viesse.

Em uma de suas viagens anteriores, a loucura despertada por Lascívia foi tão grande que durante muito tempo os homens do lugar encaravam a igreja da tal cidade como um templo construído especialmente para ela. Um Templo de Lascívia. Ela lançou um de seus feitiços justamente daquelas escadas, sem se incomodar muito com a heresia de que era capaz.

Esteban esperou alguns minutos mais antes de segui-la. Hesitou até o ponto em que pudesse entender o conteúdo do que ela deixava nas entrelinhas. E era nas entrelinhas que Lascívia se sentia mais à vontade. Mansa, lépida e dissimulada, movia-se com destreza, afundando os pés suaves na areia fofa, rumo ao momento em que pudesse ser mais explícita.

Quando se aproximou dela, os odores de Lascívia invadiram com um afã ainda maior os pulmões de Santesteban. Cumpria-se a missão de inebriá-lo, uma das últimas fases do seu feitiço. E foi então que ele se permitiu entregar-se à própria nudez. E à nudez própria de Lascívia...

À medida que foi se aproximando do clímax, Lascívia começou a notar que algo incomum acontecia. Parecia estar se apaixonando por Esteban. Não que houvesse algo de diferente naquelas pernas rijas, ou mesmo naquele peito forte. Talvez tivesse sido a maneira como ele conduziu a corte, o modo de deixar às claras aquela espécie de perversão.

Essa sensação exagerada serviu para reforçar o frêmito debaixo do corpo dele, reforçando também a dúvida... E agora? O que poderia dizer? O que poderia pensar, Lascívia?

Só que ao final de tudo, restou-lhe estranhar o fato de que Esteban não tivesse feito nenhuma jura de amor, uma única sequer, daquelas que a ilusão do orgasmo às vezes é capaz de criar. Graças a isso, seu semblante estampava a mais pura indagação. E uma certa decepção também.

Tão evidente, que mesmo Esteban não pôde ignorar.

Diante da necessidade dela por uma explicação, ele apenas respondeu que não poderia se render a uma mulher chamada Lascívia. Disse que o fato de ter sido batizada com esse nome impingia-lhe a praga de ter todos os homens, menos aquele que realmente quisesse.

Já era noite. Esteban virou as costas e tomou seu rumo por entre as árvores depois da areia. Deixou Lascívia ao relento, abandonada ao próprio destino - destino que só agora reconhecia. E ela só secou as lágrimas quando se conformou, e partiu para outra viagem.

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