ironia, ainda que tardia

Wednesday, February 01, 2006

Miriam e Marion

Daniel Soleil Noir

Marion estava sentada sobre a amurada do navio, como se fosse se jogar dali de cima a qualquer momento. O vento que soprava naquele ponto do oceano levantava o fino tecido branco que cobria seu corpo cor de oliva. Não havia, contudo, medo algum inscrito nos seus olhos, nenhum temor a secar-lhe os lábios. Havia apenas aquela ventania e seu sorriso discreto a um canto da boca, logo abaixo dos olhos castanhos semicerrados.

Enquanto isso, Malik temia apenas que aquela ventania toda levasse embora a pouca roupa que cobria Marion. Que revelasse mais de seu corpo do que já estava se insinuando àquela altura, na verdade. Os cabelos do jovem esvoaçavam com a violência das rajadas de ar. Sua pele crispava-se ainda mais frágil a cada minuto e seus olhos quase saltavam das órbitas, apesar do corpo da namorada nem oscilar com o balanço do mar ou com o sopro daquela ensolarada manhã de outono.

Ao ouvir o insistente chamado de Malik no convés, Marion virou levemente o corpo, não a ponto de olhar para ele, mas o suficiente para que pudesse compreender o que tanto ele gritava. Havia um charme na discrição daquele gesto, pois ainda que pudesse parecer inofensivo, tinha a intenção de se dirigir a Malik como uma espécie de indiferença, um charme longe do alcance dele.

Ninguém chegou a testemunhar aquela cena. Passageiros e tripulação estavam longe do proscênio em que se desenrolava o atribulado diálogo entre os dois. Havia apenas a tortura do sol a pino a torrar as têmporas de Malik, criando mais confusão em sua mente, já conturbada pela suposta loucura de Marion. Ela, por sua vez, estava confusa, mas acreditava que flertar com a loucura fosse a maneira mais conforme de se aproximar da sua própria essência, da própria personalidade.

Malik pensou em acabar com tudo aquilo com um pedido de perdão. Todavia, não havia razão para que quisesse ser perdoado. Não assumia culpa alguma, nem era isso que Marion queria lhe impingir, de todo o modo. Ele desejava encontrar uma resposta e implorava aos céus que lhe dessem alguma maneira de fazer com que a menina descesse e viesse ao encontro de seus braços ainda trêmulos.

Ele sondou dentro de si se a motivação daquele momento insano fosse a de encontrar coragem para se jogar dali de cima. A água deveria estar fria e talvez Marion não fosse mesmo sobreviver assim que se atirasse. E imaginou que, antes de dar cabo da própria vida, ela quisesse sentir o desespero daquele que mais amava, toda a intensidade de um sofrimento enorme, que crescia em projeção geométrica.

Nem isso, porém, aumentava a carga do leve medo que acometia Malik à medida que os minutos passavam. Corria-lhe junto ao buço uma espécie de fascínio morno por conta do fato de se ver em uma hora tão decisiva e - pelo menos a princípio - sem explicação. No entanto, quanto mais o vento fazia menção de despi-la, mais o corpo de Marion fazia o movimento inverso de chamá-lo a salvá-la dali de cima.

Malik então arriscou dar um passo à frente. Queria que ela não percebesse que se movimentava aos poucos em sua direção. O vento trazia os rumores das outras pessoas nos andares mais acima do navio - nada, entretanto, que ameaçasse aquele importante momento a dois. Marion já havia se voltado novamente para o oceano, concentrando-se provavelmente na linha do horizonte à sua frente, a revelar, talvez, algum pequeno vestígio de seu próprio destino.

Mas não demorou até que ela se virasse novamente na direção de Malik. E que, logo em seguida, viesse a dizer o nome de Antoine como se recitasse um verso.

- O que há com Antoine? É por causa dele que você subiu nessa amurada? É por causa dele que você deixa com que a força do vento faça menção de despi-la?

- Não! – retrucou Marion, com uma lágrima já pendendo de uma das maçãs de seu rosto – Falei o nome de Antoine para que você deixasse de imaginar coisas sobre ele. Para que você o perdoasse das insinuações dos outros a nosso respeito. Ele é inocente quanto a este meu estado, esta espécie de catatonia que me acometeu, que só deve ser curada quando estivermos de novo em terra firme.

- Não é catatonia o nome desse seu estado. Só me resta chamar de loucura aquilo para o que não encontro explicação. Se não foram os boatos em torno de Antoine, então o que te fez ficar assim, a um passo de colocar em risco a própria vida e de desaparecer bem à minha frente, como se quisesse jogar na minha cara que eu nada poderia fazer se tentasse salvá-la e tirá-la agora desse transe?

- Desculpe ter estragado assim essa nossa viagem. Juro que gostaria que as coisas fossem diferentes, mas não me peça para que não me jogue sobre a água do mar. Não tenho certeza se terei que recorrer a este gesto. Preciso antes esperar para ver qual será a sua reação diante de outro nome que ainda tenho para te dizer.

Malik se aproximou de Marion com mais um passo, desta vez sem a discrição de outrora. Precisava ter certeza de quais seriam as próximas palavras que a namorada viria a pronunciar - aquele nome que ainda se escondia no céu da boca, num som que ela ainda ouvia apenas dentro de si mesma.

- Miriam.

O corpo de Malik paralisou-se por inteiro ao ouvir aquilo. Os olhos arregalaram e os pêlos da barba se crisparam no rosto como após um arrepio. Foram poucos os segundos que antecederam o tão aguardado instante em que Marion enfim pousou os pés novamente sobre o convés. Mas já era tarde. Malik já saía correndo, tomado agora pelo temor de que Marion lhe roubasse a amante, repousando em um dos aposentos daquela embarcação.

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