ironia, ainda que tardia

Thursday, September 14, 2006

Ludivine

Daniel Soleil Noir

O olhar insidioso de Ludivine era a justificativa para a feição pétrea que se escondia debaixo da barba rarefeita de Leonardo. Era por causa desse olhar que ele mantinha aquele seu ar circunspecto, com os braços sempre cruzados, como se com eles pudesse amarrar o peito contra a expansão do próprio âmago em direção àquela mulher que ainda tomava conta do seu ser.

A verdade era que Leonardo tinha verdadeiro pavor de Ludivine. Temia se entregar a ela de novo. Temia entregar novamente a sua própria vida.

É medo o nome do sentimento que ainda o assalta ao se lembrar daquela noite. A ventania fez bater com força as venezianas contra as janelas da velha casa. Os lustres balouçavam por conta dos ventos que sopravam através das frestas. Aquele assobio estridente já havia apagado as velas nos candelabros e enchia aquele fim de tarde com uma atmosfera digna de um filme de terror.

O problema é que Leonardo nunca que se dera conta de que tudo aquilo só acontecia pelo fato de estar sozinho naquela casa, aprisionado pela própria essência, que o trancafiava dentro de si. No entanto, apesar de tudo isso, preferia se manter alheio ao resto do mundo. Sentia-se seguro assim. Afinal, não sabia o que era luz. Não sentia outra temperatura que não fosse o frio.

Quando enfim anoiteceu, empurrou a porta e tentou vencer o vento a caminho de um velho cipreste que havia metros adiante. Chegou ao pé da árvore com os cabelos já todos desgrenhados e com as mãos segurando um paletó puído, cujos botões foram se perdendo ao longo do tempo. Tentava fechá-lo em pelo menos um ponto junto à gola, enquanto as pernas se esforçavam em mantê-lo de pé.

Logo que alcançou o cipreste, sentou-se sobre sua raiz, com as pernas cruzadas e as costas esticadas junto ao tronco. Era possível observar com calma a fachada da própria casa, apesar do temporal que o horizonte anunciava. Mas a chuva não o preocupava. Sua intenção era fugir um pouco de si mesmo, nem que fosse por alguns minutos, antes que começasse a chover.

Eis então que vislumbrou uma mulher saindo da casa. E se surpreendeu, crispando-se em seguida, ainda que não tenha se levantado de onde estava. Morava sozinho e não sabia de onde ela poderia ter vindo. Além do mais, não a conhecia – ou pelo menos não a reconhecera naquele momento. Como poderia ter entrado? De onde viera? Desde quando estaria lá? As perguntas apenas se multiplicavam dentro sua alma mal-assombrada.

Depois de pousar os pés sobre a soleira, a mulher passou a andar em sua direção. Usava um vestido azul anil da cor de seus olhos, de um tecido tão leve quanto a suavidade de sua pele exageradamente branca. Os cabelos castanhos escorriam lisos sobre as espáduas e iam até a altura da cintura, cingida por flores que pareciam colhidas de um jardim distante dali.

Enquanto observava a aproximação da mulher, Leonardo mantinha-se sentado, mas arrastava os pés descalços de forma convulsa sobre as folhas secas caídas sobre o solo. Aquele movimento tornava-se cada vez mais frenético a cada passo dela, a cada passo responsável por deixá-los mais próximos. Era uma espécie de convulsão, algo com o único propósito de descarregar a tensão.

Leonardo só identificava a silhueta da mulher em meio à paisagem por conta do breve feixe de luz da lua que passava por entre as nuvens. E era essa luminosidade branca que a envolvia a razão para que ele acreditasse estar diante de algo que não pertencia a este mundo, um espectro que surgira de onde ele sequer imaginava para assustá-lo em sua tão benquista solidão.

Quando ela chegou, Leonardo já estava de pé, embora ainda recostado junto ao cipreste. A dois passos de distância, Ludivine se apresentou. Só então ele se lembrou que ambos já se conheciam. Tinham se visto pela primeira vez em meio a outra tempestade, muitos anos antes do que viviam naquele exato instante. Só que agora, ao contrário daquela época, Ludivine era sinônimo do mesmo rancor que o levara a caminho da própria derrocada.

Naquele passado distante, o decote de Ludivine foi o bastante para levar Leonardo por uma longa vereda de loucura, em que o amor que sentia por ela, mesmo um amor à primeira vista, era a razão para a sua insanidade. E perdido em meio a esse sentimento profundo, trocou toda a segurança de seu mundo pelo mundo dela, o mundo de Ludivine. Foi quando percebeu que já não tinha mais nada. As pessoas sequer lembravam de quem ele realmente se tratava.

Amargurado por conta da mal-sucedida troca, Leonardo optou pelo exílio de ambos os mundos. Tentou uma nova vida, longe das pessoas. E assim, ao longo dos anos, foi quase apagando a imagem de Ludivine da memória. Estava chegando quase ao ponto de acreditar que aquela sempre havia sido a sua vida.

Mas agora ela estava tão próxima de novo, provocando-lhe um desconcerto que jamais havia sentido. Próxima, a ponto de beijar-lhe a boca. Ao final do beijo, porém, Ludivine sumiu como que por um passe de mágica. E só não voltou a desaparecer por completo da memória do ex-amante graças à lembrança do olhar insidioso que fizera questão de deixar com ele por toda a eternidade.

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