ironia, ainda que tardia

Monday, February 14, 2005

Cigarro aceso

Daniel Soleil Noir

Alguém havia jogado, numa noite de sexta-feira, meio cigarro aceso sobre a dupla faixa amarela que divide a rua Augusta. Mesmo da calçada, dava para notar que ele tinha o filtro branco, imaculado, sem vestígios de batom ou algo do gênero. Era impossível, porém, identificar a marca, escrita em letras pequenas, talvez em itálico. Mas o mais evidente era justamente o fato de permanecer aceso, fumegando como antes de ser jogado, fazendo parecer que era do asfalto que brotava aquela fina fumaça branca – que, por sinal, não alcançava os trinta centímetros de altura. Durante um certo tempo, detive minha atenção no tal cigarro, esperando que algum ônibus ou algum carro, subindo ou descendo a rua, viesse a apagá-lo. Esqueci, por instantes, o copo de cerveja à minha frente. Os veículos, entretanto, passavam perto e quase por milagre não atingiam o frágil objeto que aos poucos se consumia. E foi queimando lentamente até que não sobrasse nada mais que cinzas.

Indaguei-me quem, por acaso, jogaria fora meio cigarro aceso; quem seria o autor ou a autora desse ato de tamanha displicência. Comecei então a procurar indícios e suspeitos nas outras pessoas ao redor, que também bebiam no mesmo bar em que eu me encontrava, nas mesas dispostas sobre a calçada. O velho, que pedira meia xícara de café com leite, não tinha cara de fumante, embora segurasse a caneta esferográfica com que preenchia as cruzadas no jornal como se fosse um cigarro. O casal da mesa seguinte, a moça loira e o rapaz negro, fumava, mas seus cigarros tinham o filtro pardo, diferente daquele que havia sido atirado no meio da rua. Outros dois homens, mais à frente, jogavam xadrez e discutiam política e era provável que, se fumassem alguma coisa, não deveriam fazê-lo em público. Continuei observando até a hora em que me surpreendi ao me deparar com o gerente do departamento, o mesmo que decidira por minha demissão ainda pela manhã.

Ele estava acompanhado de uma loira e de um outro homem, que também ria. Cheguei a pensar em pedir a conta e mudar de bar, mas desisti da idéia ao ter a certeza de que o trio não me veria, mesmo que eu os observasse com nitidez. Eu não conseguia ouvir o que eles diziam, nem imaginava o que conversavam. Apenas assistia aos três, como se estivesse num teatro, diante de uma peça sem falas. Eu me concentrava principalmente nos gestos. E logo passei a tomá-los como os principais suspeitos de terem jogado o tal cigarro aceso.

A mulher fumava com o cotovelo apoiado sobre a mesa de plástico, o antebraço em linha vertical e a brasa apontada para o alto, assentindo, com um sorriso amarelo na seqüência, as afirmações dos homens que a acompanhavam. O gerente do departamento, por sua vez, tirava muito pouco o cigarro da boca e o fazia somente para bater a cinza na borda do cinzeiro. Mesmo assim, apenas quando ela já estava a ponto de cair por si só. Já o outro homem tinha o hábito de manter seu cigarro entre os dedos da mão direita, colocando-o como parte integrante de sua gesticulação e utilizando-o para pontuar suas argumentações mais enfáticas. E enquanto eu os olhava, esperava, na verdade, que um dos três pudesse repetir a cena anterior, ainda que eu não soubesse se havia sido um deles o protagonista. Uma espera que poderia se tornar, a cada minuto, cada vez mais inútil.

Apesar de concentrado, eu continuava a beber minha cerveja, a mais cara que o bar servia. Não admitia me obrigar a dar importância ao preço e ao fato de que, a cada garrafa que eu pedia, era um dinheiro a menos na minha conta bancária e uma garantia ainda menor de que eu teria como sobreviver caso não arranjasse outro emprego em breve. Aliás, desejava que, se fosse para que meu dinheiro acabasse com alguma coisa, que fosse com bebidas, no balcão ou em uma das mesas daquele bar na esquina da Augusta com a Luís Coelho, sentido centro. Além do mais, passavam ali duas linhas de ônibus que não paravam exatamente na porta de casa, mas que me deixavam a algumas quadras de lá. Como se não bastasse essa vantagem, banal a uma primeira vista, eu me sentia acompanhado de certa forma, mesmo que preferisse beber por ali sem companhia conhecida e me sentisse, por outro lado, acompanhado por todos à minha volta. Não no sentido piegas que isso talvez viesse a ter, mas no sentido de que todos nós talvez estivéssemos no mesmo barco, um sem notar o outro naquele bar lotado.

Era possível, no entanto, que o gerente do departamento estivesse em um barco diferente do meu e que seria ingênuo de minha parte acreditar no contrário. Confesso, contudo, que cheguei a crer nessa bobagem nos tempos em que contava com uma certa estabilidade no emprego, um futuro pela frente e incontáveis perspectivas de promoções a cargos que escalavam o organograma da empresa quase que infinitamente. Mas todos usufruímos o direito de ser otários algumas vezes na vida e reconheço ter abusado um bocado dessa prerrogativa. Não que isso pudesse ser explicado como um desencanto com o mundo, pois em situações nas quais eu me aproximava disso, reduzia meu mundo ao bar em que me encontrava e tentava retomar minha relação com o resto de tudo a partir dali.

Voltando ao assunto que originou o presente relato, o gerente do departamento terminou um dos cigarros que acendera e espremeu a bituca contra o fundo do cinzeiro de aço inoxidável. Isso quase fez com que eu o tirasse automaticamente do rol dos principais suspeitos. E em meio a dúvida se lhe dava ou não a absolvição completa, alguns questionamentos retornaram ou vieram-me à mente. Afinal de contas, quem jogaria meio cigarro aceso no meio da rua? Por que teria desistido de fumá-lo até o fim? Precisaria mesmo haver um motivo? Alguém poderia ter vetado sua entrada em um carro, fosse em um táxi ou em uma carona. Alguém poderia ter evitado sua entrada em um prédio, no hall ou na portaria. A repentina chegada do ônibus talvez tivesse precipitado o iminente passageiro a tamanho desperdício. Mas por que não apagá-lo discretamente em uma parede qualquer, a parede mais próxima, e guardá-lo junto aos outros cigarros novos? Digo isso, mas não fumo, nem sei quanto custa um maço. Sei que se trata de um artigo caro para as minhas posses, em relação aos meus gastos diários. E essa já é uma ótima razão para que eu não seja um fumante. Lembro de uma amiga minha que costumava guardar o cigarro interrompido para fumá-lo de novo em momento mais oportuno. Isso, realmente, me era mais aceitável, um modelo de atitude a ser seguido.

Mais para o fim da noite, o garçom levou a conta para a mesa com o gerente do departamento, com o homem e com a loira. E quando os três, enfim, foram embora, vi-me ainda mais sem respostas. Desde o instante em que comecei a observá-los, nenhum deles sequer fez menção de atirar um cigarro que já não tivesse sido completamente fumado. Não que, por conta disso, o trio deixasse a condição de suspeito; somente a compartilhava em pé de igualdade com todos os que passaram pela Augusta momentos antes que eu flagrasse o cigarro deitado sobre o asfalto, junto à dupla faixa amarela.

Também pedi a conta. Tirei da carteira três notas gordas e deixei-as sobre o balcão, debaixo do paliteiro. Ao sair do bar, resolvi atravessar a rua, mesmo que isso não fosse necessário para tomar o caminho de casa. Tirei o primeiro pé do meio-fio assim que um carro branco passou por mim. Só que decidi parar no meio da Augusta, sem razão plausível. Mas não fui colhido por nenhum veículo que utilizasse a via àquela hora da madrugada. Dois minutos depois, retomei a travessia e continuei a viver minha própria vida.

* - Apesar de alguns aspectos do conto acima fazerem parte do cotidiano do autor, o texto não é necessariamente autobiográfico.

1 Comments:

  • Das cinzas, você construiu personagens de carne e osso. O inverso da máxima: "memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris". Muito bom!

    By Blogger Claudio Costa, At 7:08 AM  

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