ironia, ainda que tardia

Monday, January 10, 2005

Incesto

(ou Como se fôssemos dois irmãos)

Daniel Soleil Noir

A amizade havia nos transformado em dois irmãos. E tudo o que nos aproximasse, no sentido carnal do verbo aproximar, seria capaz de nos levar sumariamente à beira do precipício do que se chama incesto. E o que se chama incesto se impôs como nosso destino, destino de corações que erram vítimas de paixões alheias, alheias também a nossa própria vontade, ao nosso próprio desejo.

Confesso que várias vezes quis aproveitar o ensejo de quando estávamos juntos, porém apenas próximos, e não amalgamados como há muito tempo eu já sonhara, em pânico por trair assim, talvez, nossa amizade. Tentei um dia, ou numa noite qualquer, alcançar seu hálito que se esquivava para os dedos que do maço filavam um cigarro com filtro branco. Minha boca resignou-se dormente ao vê-la soprar uma fumaça infértil, e novamente casta, recitou assuntos meramente desinteressantes.

Outro dia, quase sem querer, foi a sua vez de se insinuar, insinuando também o pecado ora citado. Deitou-se, querida, sobre minhas pernas, repousando a cabeça sobre minhas coxas, e logo adormeceu debaixo de um domingo que mal amanhecia. Tínhamos ali, diante de nós, um dia inteiro que se insinuava na silhueta da cidade, nos contornos do Aterro. Já que não aproveitáramos a noite anterior entre beijos e abraços, por que não tentar, quem sabe, no alvorecer de uma nova semana? Sei que não tentamos, mais uma vez, no final das contas, menos por coragem que por covardia, menos por respeito que por medo mesmo. Bastou uma buzina na avenida às nossas costas para que nos despertasse do transe o mundo de tudo aquilo o que não sentíamos, que reprimia, na verdade, o que mais queríamos. Queríamos a nós mesmos, um do outro, e nada mais.

Houve uma tarde em que tomei sua mão e temia que a tirasse de mim sem dó ou piedade, como dizem os cristãos. Um temor barato que, por outro lado, porém, não me impediu de dedilhar sua pele sem que percebesse, distraída em uma conversa feita de amenidades, problemas corriqueiros, coisas do dia a dia. E dia após dia eu sonhava com a hora em que pudesse tomar sua mão e isso mudasse para sempre o nosso futuro, e já não estivesse mais tão distraída quanto antes. Terminou a conversa, você sorriu pra mim e eu lhe devolvi o sorriso em forma de escárnio, sacanagem mesmo, que era uma maneira de me defender desse amor bobo que eu sentia. Sei que não deveria revelar tais segredos sobre mim, mas agora, enfim, você pode desvendar meu coração, amor.

E os dias em passávamos apartados? Você se lembra? Eu me lembro bem. Quantas vezes eu te vi passar pelo calçadão à tardinha, de olho na janela fechada, acortinada, do décimo primeiro andar, com o exclusivo intuito de identificar minha sombra na fazenda branca, fazendo um esforço enorme para não confundi-la com a sombra de uma nuvem besta, que, traiçoeira, esconderia os indícios de minha presença em casa. Eu sempre te via, por uma fresta da própria janela, sempre no mesmo horário, quando você saía de sua casa para uma passada no banco, a cada um dos seus dias de folga. Foram poucos, eu sei, hoje quase não existem. Mas até quando você está no trabalho, sei que lembra de mim. Ao consultar minha fotografia num porta-retratos discreto. Ao me telefonar em vão quando eu não atendia.

Uma vez juntos de novo, novamente você se dizia lúcida o bastante para não estragar ou ameaçar a nossa amizade. Eu me perguntava de que valia tanta lucidez e, num momento de loucura, decidi trair nosso amor platônico. Arranjei outra que não fosse minha amiga, que sendo inimiga eu pudesse enfrentar na cama. Chamava-se Bárbara, como a canção do Chico que jamais ouvíramos juntos. Quase me mudei pra Ipanema e quase deixei que me invadisse enquanto, com destemor, eu lhe invadia a cona com minha adaga em riste. Ferida apenas na primeira batalha, amou-me em todas as outras como se fosse a primeira vez. Mal sabia ela que eu tinha ainda o coração envenenado pelo amor proibido que eu sentia por você. E, em minha boca, vestígios imperceptíveis desse veneno faziam com que eu imaginasse que seria possível amá-la como ainda amo você.

Acabamos. De repente. Como se não déssemos bola, sabe? E também, não mais que de repente, percebi que a guerra inglória a que me lançara não passara de uma aventura tosca, imatura, dessas que servem só para contar vantagens e te provocar ciúmes. Ciúmes tais que você nem sempre escondia com costumeira discrição. Seus olhos em chamas diziam mais do que pudesse pronunciar com a boca ressequida de ódio (ou seria amor reprimido, coitada?!). Mas eu também o reprimia. Para te provocar. E por amor próprio, eu confesso.


E se consumássemos um dia o nosso incesto? Talvez se quebrasse o encanto de um amor perfeito que só existia em nossos corações. E nossos filhos seriam aberrações de nós mesmos: o nariz do pai, os olhos da mãe, as maçãs do rosto iguais às de uma tia solteira, que também tivesse num passado remoto um amor próximo, ao mesmo tempo distante.

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