ironia, ainda que tardia

Thursday, January 20, 2005

Embora

Daniel Soleil Noir

Senti como se tivesse abortado um filho quando você tirou sua cabeça de junto do meu ventre. Busquei seus olhos e você, ainda ajoelhado, também buscou os meus. E sussurrou, quase como se quisesse que eu não ouvisse, a triste sentença que já estava para desferir contra mim. Nunca mais; foi o que você disse. Assim, ainda com a vista colada na minha vista, você se levantou devagar, a ponto de precisar se abaixar um pouco para beijar minha testa e ir embora.

Não ouvi o barulho da porta. Não ouvi o barulho de mais nada. Não sei se você não queria prolongar a iminência de sua ausência, impondo-me de uma vez só a sua ausência definitiva. Ou prolongar os mínimos vestígios que se impregnariam em minha memória daqueles momentos de despedida. Se não ouvi, também não vi mais nada naquela noite. Ou vi apenas aquilo que as lágrimas me permitiam enxergar. Bem pouco. O quarto que você abandonara. Uma cama de solteira e a vista que eu tinha do bairro no andar de cima do sobrado.

Eu estava sozinha a partir de então. Devolvida abruptamente à minha condição de menina. Já que era disso mesmo que eu não passava, na verdade. Soluços desesperados marcavam esse meu injusto retorno à infância. E já não havia mais como fugir da caixinha de música sobre o criado-mudo. Das bonecas recostadas na cabeceira da cama, com sorrisos que deveriam ser reconfortantes e que estavam bem longe disso. O meu refúgio havia me deixado havia poucos instantes, sem qualquer explicação. Ou pelo menos sem uma explicação que eu pudesse compreender.

Um dia, você chegou a aventar a possibilidade de ir embora. E eu inventei de fingir te esnobar, com um riso maroto que tentava se esconder no canto da boca. Então me insinuei para você e cheguei perto do seu peito, onde, suspirando, eu me recostei. Não demorou para que eu já sentisse, de repente, o seu hálito envenenando tudo o que havia dentro de mim. Era mais ou menos desse jeito que terminávamos todas as tardes que passávamos juntos. Sentados sobre o acabamento de granito da mureta na varanda, respirando a atmosfera terna da tarde, como se essa mesma tarde, um dia, pudesse mesmo ser eterna.

Você chegou até a colocar um segredo aqui dentro de mim. Até hoje não sei porque ele não vingou. Eu parecia outra enquanto ele crescia e, em breve, deixaria de ser um segredo só nosso. Só que de uma hora para a outra ele parou de crescer. E foi embora. Foi exatamente como se você tivesse me abandonado. Passou a faltar algo dentro do meu ventre. O pior era que eu tinha plena consciência de que o que faltava era um pedaço de você, que misturado a um pedaço de mim, formava o que poderia ter sido um novo ser, e não foi. Confesso que fiquei confusa. Aturdida. Eu me consolava daquela sua primeira ausência com os dias que ainda me restavam junto de você. Nem desconfiava de que também seriam os últimos.

Fui percebendo, momentos depois da sua partida, que as lágrimas estavam se esgotando... que meus olhos estavam inchados... que eu já estava cansada de tanto chorar. Mesmo assim, não conseguia conter os soluços e eles se intensificaram quando dei por mim também que não havia ali perto sequer um porta-retratos com uma foto sua. Joguei-me sobre a cama como se não quisesse mais respirar e espalhei-me no colchão como se desejasse ocupar o seu espaço, simular o calor que você deixava sobre os lençóis. Porém, ainda é impossível simular o seu amor e eu também nem queria isso... Estava confusa demais para saber o que queria.

Mas foi num intervalo em que a razão se fez presente que atinei para uma maneira de avivar a lembrança que eu sempre terei de você. O velho vestido, de um vermelho desbotado, escorreu pelo meu corpo frágil de menina até o infinito, revelando minha pele clara, que um dia já havia sido a sua segunda pele. E diante do espelho, percorri com meus olhos castanhos os mesmos caminhos que suas mãos percorriam apressadas, os mesmos atalhos e mesmo os seus esconderijos mais recônditos eu encontrei olhando para o meu reflexo no espelho. E olhando para mim mesma, eu reencontrei você.

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