ironia, ainda que tardia

Saturday, February 05, 2005

Celeste

Daniel Soleil Noir

Ambos giravam na festa em torno da órbita um do outro. Ele, de longe, seguia os passos dela, como que conduzido por um campo magnético ainda desconhecido. Ela, por sua vez, desviava dos outros convidados, com passos atrapalhados e uma taça de champanhe em uma das mãos. Eles não se olhavam, a princípio, mas o tal campo magnético já estava estabelecido. O comportamento dos dois se assemelhava bastante ao que a astronomia descreve como o de estrelas gêmeas. Mas o que havia de físico entre eles talvez fosse mais bem explicado pela Biologia, na verdade.

Houve um momento em que os olhares se cruzaram, apesar do ambiente mal iluminado, num fenômeno que só ocorre em intervalos de bilhões e bilhões de anos. Porém, eles fingiram não ter visto um ao outro. Ele voltou à calma e à previsibilidade de seu sistema solar, enquanto ela fazia o mesmo, com as poucas amigas à sua volta. Já o restante do cosmos permanecia em sua trajetória de caos, a caminho do imprevisível, embora na Terra ainda se procure um sentido pra vida e pra tudo o que acontece nesse mundo de Deus.

Ainda que não olhassem mais um para o outro, continuaram a se aproximar cada vez mais, em rotações e translações que, mesmo que aleatórias, possuíam um objetivo único e nobre. Em breve, já estariam lado a lado, lançando olhares furtivos e dissimulados, como se o fingimento e a timidez pudessem ser ainda maiores. Ele se concentrava no rosto dela, evitando propriamente os olhos para que não fosse pego em flagrante na sua contemplação. Ela, ao contrário, era mais audaz, justamente porque tentava flagra-lo, ainda que ele tentasse desviar o olhar para um ponto perdido no meio do nada, confundido em meio a outros pontos difusos de luzes coloridas nas proximidades da pista de dança.

No entanto, quando enfim se distraíram, não puderam evitar a aproximação definitiva. De costas um para o outro, acabaram se esbarrando num choque suave, sem a mínima menção de dor. Colocaram-se então cara a cara e perceberam-se mais próximos do que jamais haviam estado antes. Os olhos de Daniel viam agora de mais perto o delicado rosto de Mariana a uma distância mínima da sua própria face. E Mariana, concentrada, quase podia sentir a aspereza da “sua barba por fazer” machucar-lhe a pele alva e avermelhada das maçãs. E bastou ela notar que ele tinha a boca larga, e talvez macia, para abdicar da visão e recorrer ao sabor daqueles lábios. O beijo, todavia, o surpreendeu. Já se preparava para abortar a viagem segundos antes da trajetória repentina descrita pelo ósculo iminente.

E as mãos dele buscaram os cabelos dela, ainda presos num rabo de cavalo. E a boca dela quase engoliu a língua dele, tomando todo o seu fôlego e oxigênio.


Exatamente às três e dezessete da manhã, o fenômeno encaminhou-se para um momento que mesmo para a ciência atual ainda é impossível explicar conclusivamente. Já não se beijavam mais. Apenas um abraço unia os dois. Atados pelos dedos entrecruzados e de frente um para o outro. Ouviu-se a partir daí as primeiras palavras. E o que as mais potentes lentes do universo puderam enxergar foi a viagem de Mariana e Daniel para uma galáxia mais tranqüila, longe dali.

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