ironia, ainda que tardia

Friday, January 28, 2005

Doce de abóbora na panela

Daniel Soleil Noir

Doce de abóbora na panela. Comida na tigela do cachorro. Eu sabia que estava muito longe de ser como Isabela, mas precisava impressioná-lo enquanto ainda havia tempo. Enquanto ela ainda não voltava de viagem. Só não lhe servi o café na cama, pois ele se levantou antes que a água estivesse fervida na chaleira. E ainda sem camisa, vestido apenas com uma cueca branca, desdobrou o jornal a um canto da varanda e foi diretamente à página de turfe.

Não que fosse de apostar em cavalos. Seu jeito pragmático estava longe também desse tipo de extravagância. Ao invés de arriscar suas moedas no jóquei, como alguns de seus amigos faziam, apostava contra si próprio, contra os próprios pensamentos. Percebi isso uma vez e nunca mais esqueci. Um dia apostou num azarão para que enfim soubesse se Isabela ligaria naquela noite. O cavalo cruzou a linha de chegada na frente, com uma cabeça de vantagem, e ela ligou. Ficaram horas a fio ao telefone. Mas ela não disse quando voltaria e isso me deixou mais tranqüila.

Sentou-se à mesa da cozinha e continuou a ler o jornal. Virou as páginas apressadamente em busca do horóscopo, logo acima das cruzadas, no segundo caderno. Ele era de escorpião, com ascendente em peixes. E gostava de frisar esse fato porque a própria Isabela era de peixes, embora ele confessasse que não sabia ao certo o que tal coisa significava. Houve uma tarde em que, arrumando a despensa, lembrei-lhe que, por sinal, aquele era também o meu signo, mas ele nem me deu bola. Preferiu lembrar que uma das latas de extrato de tomate havia passado da validade. Que também não havia mais alho no armário. Que faltava tempero naquela nossa vida chinfrim.

Quando então decidiu encher a xícara com o primeiro gole de café do dia, o feijão já estava no fogo. Feijão preto, como ele gostava. E como eu imaginava que era desse modo que Isabela preparava. Mas temi, por instantes, que ele reprovasse o café e que dissesse, quase distraído, que não estava tão bom quanto o dela. Para meu alívio, graças a Deus, não falou nada a princípio. Isso, porém, apenas diminuiu a tensão, que não se dissipou por completo e que ainda existia. Foi só fazer a menção de dizer suas primeiras palavras da manhã para que eu me retesasse inteira e, enxugando as mãos no pano de prato ainda pendurado na porta do forno, detive-me por um minuto inteiro para ouvir atenta sua sentença. E se não acreditei quando ele disse, meio sem jeito, que o café estava bom, acreditei menos ainda quando ouvi que estava melhor que o café que Isabela fazia.

- Isabela nunca soube passar café pela manhã. Essa era sempre tarefa minha – disse ele assim, em duas singelas frases que, por loucura minha, acabei tomando como que de um desdém atroz. E podiam até nem ter desdenhado de mim, na verdade. Mas só o fato de ouvir de novo o nome dela num momento que parecia tão nosso... num momento que parecia traí-la onde quer que ela estivesse, magoou-me sobremaneira. A ponto de eu me virar de costas novamente para destampar o arroz e conferir se a água na panela ainda borbulhava. Ou se as plantas na janela da cozinha ainda queriam os meus cuidados ou se também sentiam, como sentia o meu algoz, a falta de Isabela.

Às dez e quinze, ele levantou-se da mesa da cozinha e se dirigiu até o Fusca estacionado na garagem. Ia buscar o maço de cigarros que havia esquecido no porta-luva do carro. Seguido pelo vira-lata atento que, como eu, não perdia um de seus passos, ele tocou a maçaneta com cuidado e abriu a porta, que rangeu um pouco. Sentou-se no banco do motorista, forrado em couro desde a última reforma, e quase precisou se deitar sobre o carona para alcançar o maço, perdido lá no fundo, atrás da flanela suja de graxa. Ao se recompor, já com o objetivo fechado na palma da mão esquerda, esbarrou no crucifixo pendurado no retrovisor. Isso não impediu, entretanto, que conferisse a foto de Isabela colada no painel, tapando a metade direita do velocímetro.

Ao vê-lo retornar à cozinha, com o cigarro já aceso, decidi perguntá-lo qual a razão daquela indiferença em relação a mim, pobre mulher que apenas cumpria a promessa feita à irmã de que cuidaria de seu homem até que voltasse de Granada. E ele me respondeu, sem ao menos se alterar.


- Daniela, mesmo sendo gêmeas, você não tem nada da Isabela.


Sim, aquele era meu maior defeito, reconheço. Arrumei minhas trouxas e fui embora, com a mesma cara com que chegara, com o mesmo rosto de Isabela. E foi justamente por causa dele, esse mesmo rosto, que voltei à noite e fingi ser quem não era.

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