ironia, ainda que tardia

Monday, January 15, 2007

O pijama aberto à Família

Daniel Soleil

* Que Chico Buarque me perdoe a heresia


Amanheceu um dia claro, um dia em que os raios de sol entravam pela janela do quarto sem pedir licença. Amanheceu um tanto assim despudorada, com o pijama aberto à família. E fui o primeiro a percebê-la entregue, demasiadamente alegre, jogada sobre os lençóis da cama, cansada por dormir demais.

Juro que não quis entrar no quarto dela. Pelo menos não fui eu quem virou a maçaneta. O vento fez com que a porta se abrisse sozinha. Talvez tivesse sido um passe de mágica. Ela então me chamou ao me ver passar por entre a fresta. Hesitei a princípio, imaginando que não fosse comigo, até que ela me chamou pelo nome, pedindo que eu entrasse e fechasse a porta atrás de mim.

Segui exatamente o que ela havia pedido, sem deixar de notar, porém, toda a sua displicência sobre um dos leitos da antiga fazenda. Percebi os botões abertos na camisa do pijama e o pedaço da pele branca que seu colo desvelava àquela hora da manhã. E não usava mais nada. Apenas a camisa. O resto, suas pernas escondiam em movimentos lentos e insidiosos sobre o colchão.

Perguntei o que queria, antes que ela desse um sorriso malicioso e se levantasse da cama, vindo na minha direção. Clara sabia da minha timidez, sabia dos meus quinze anos, da minha recente puberdade. Por isso, parou na minha frente, com a boca entreaberta, os olhos semicerrados e a língua excessivamente vermelha lambendo os cantos de seus lábios carmesins.

Mas quando demonstrei a primeira reação, ao querer tocar-lhe os braços, ela se virou de costas e deu mais três passos em direção ao toucador. Queria arrumar os cabelos que estavam despenteados em forma de lascívia. Queria dar-lhes outro jeito, fingindo asseio e até alguma espécie de recato.

Enquanto isso, eu somente observava, quieto, calado, sem dizer qualquer coisa que pudesse acordar o resto da família. Haveria uma festa na hora do almoço e todos estavam prestes a acordar, para encerrar enfim os últimos preparativos. Até meus passos, com os pés descalços sobre o piso de madeira rústica, eram tíbios; ao contrário dos passos de Clara, calçados com uma sandália de pano.

Ao terminar de se pentear, ela pediu que eu me aproximasse, o que fiz, desta vez sem hesitar. E ao chegar mais perto, fitei o espelho com calma e encontrei, sem querer, os olhos azuis com que Clara também me fitava. Tive a idéia de repousar uma das mãos sobre o ombro dela, esboçando alguma outra reação que talvez a contentasse e que me conduzisse depois para o que ela quisesse.

Clara pediu, no entanto, que eu lhe desse um beijo demorado no pescoço. Ela fechou os olhos e jogou a cabeça para a esquerda para que eu pudesse chegar do outro lado. Minha respiração se sobressaltou a seguir, e respirei desse jeito por alguns instantes, até colar minha boca àquela pele macia. Ela confessou que meu fôlego lhe aquecia a derme e ajudava a acender alguma coisa dentro de seu corpo. E disse isso com as mãos sobrepostas junto ao ventre, embora eu ainda não imaginasse que aquele ventre já fosse em si uma fonte de calor.

Concluí o beijo que ela me encomendara e logo me pus em posição de sentido, certamente à espera do seu próximo pedido. Clara, por sua vez, ainda conferia o sabor dos próprios lábios, como se talvez saboreasse aquele meu gesto. À medida que esperava, tive tempo de observar a janela, as venezianas escancaradas, praticamente jogadas contra as paredes. Já a cortina de renda voava como se fosse um véu.

E foi naquele átimo de distração que ela me pegou de assalto e aproveitou sua chance de beijar minha boca. Não me reconheci ao tomar seus quadris entre minhas mãos seguras, segurando com força aquele corpo sinuoso, aquele corpo proibido – pois eu ainda duvidava que houvesse na família quem não considerasse o amor entre dois primos uma forma interdita de amor.

Senti uma chama brotar no fundo do peito quando ela me puxou pelo sexo para ainda mais perto de si. Eu não tinha mais como esconder aquele membro entre as minhas próprias pernas. E, para dizer a verdade, nem queria mais. O que interessava, mesmo sendo proibido, era desaparecer no meio do ventre de Clara, como se ambos tivéssemos talento para um milagre.

Longos minutos se passaram e nossos corpos atados giravam em falso sobre o piso da alcova. Até que juntos perdemos o equilíbrio e despencamos lado a lado sobre a cama desfeita. Depois, nem precisou que nos olhássemos de novo para que começássemos a fazer aquilo que mais queríamos. Bastou que a coragem me fizesse terminar de desabotoar a camisa do pijama dela – e que a sua libido arrancasse com as unhas a roupa simplória com que eu me vestia.

Eu sentia o seu frêmito debaixo de mim como se sentisse o gozo de todas as mulheres do mundo. Ela era a primeira e seria a única, pois o seu gosto residiria em mim e se confundiria com o de todas as outras mulheres que passassem pela minha vida. Eu tinha certeza disso ao sorver seus seios, ao cobrir sua derme com a minha derme escaldante, ao invadi-la com o meu amor em riste e com a seiva que escorresse de mim ao fim daquele pecado original.

Lembro que adormeci ao final de tudo. Era preciso repor o sono perdido com a insônia de outrora e me recuperar do cansaço da carne. Dormi sobre os lençóis molhados pelo suor que havia vazado pela nossa pele. Sem perceber, porém, que outro já entrava no quarto, enquanto Clara acabava de abotoar a camisa do pijama. E mesmo percebendo o estranho vulto passar por mim, eu estava esgotado demais para não acreditar que aquilo fosse uma ilusão sem importância.

Mas se existia alguma ilusão, esta ilusão era de que Clara seria somente minha. Meu pobre coração acreditou que seria o único a entrar por aquela porta e encontrá-la com o pijama aberto, na manhã de um domingo em plena fazenda.

E era justamente ele, Pedro, meu irmão, que passava a percorrer com as mãos o corpo almiscarado de Clara. Era ele que invadia, com os dedos apressados, a fresta que se abria no meio do pijama da prima. A única diferença que havia entre nós dois era a de que ele viu a porta aberta e entrou sem ser convidado, como se o convite estivesse implícito nos gemidos que ouvira um pouco antes e que interromperam seu sono no quarto contíguo.

Ele tinha um jeito estúpido de agarrá-la e empreendia seu amor colocando o corpo daquela menina entre os seus próprios dentes. E tanta estupidez foi o suficiente para que eu acordasse, ainda confuso por tudo o que já havia acontecido. De tão confuso, demorei a esboçar qualquer reação que reprovasse aquele ato. E desisti de uma vez por todas ao perceber que, apesar de ambos notarem a minha presença, insistiam em continuar sem nenhum incômodo.

Confesso que pensei em fugir dali, sob pena de ser dominado por uma curiosidade que possivelmente não encontraria fim. Sairia do quarto, fecharia a porta novamente e me devotaria somente aos meus afazeres matinais e aos preparativos para a festa. Mas desisti e preferi me torturar com a imagem daquele regozijo que se consumava sobre a cadeira diante do toucador.

E mesmo ao final, os dois resfolegaram durante uns bons minutos, ambos com os olhos fechados, como se estivessem em outro mundo, distantes da minha presença. Ao passo que eu, voltando a me afundar em ciúmes e na timidez de sempre, encostava e escorria pela parede fria, agora com a visão dos pássaros que voavam na paisagem dos campos que se expandiam através da janela aberta.

Um vento forte, mais uma vez, fez com que a porta se abrisse sozinha. Os três corpos nus se deixaram tomar pelo temor de que alguém os descobrisse assim. Mas quem entrou pela porta foi Luíza, irmã mais nova de Clara.

As duas se encararam através das lágrimas, se abraçaram com força e se beijaram na boca. Nem eu nem Pedro entendemos o que acontecia naquele momento. Percebi, no entanto, que precisava fechar a porta. E permaneci junto a ela enquanto nossas primas se engoliam com indisfarçada gula, com Clara puxando com os dentes afiados a camisola que cobria o corpo frágil de Luíza.

Ficamos presos naquele quarto por horas a fio. E todos fingiram não notar nossa ausência durante toda a festa. Os pais de Clara e Luíza se refestelavam com a mesa farta que os anfitriões ofereciam, com os vinhos de boa safra dispostos em garrafas importadas. Nossos pais serviam mais e mais, sob o som das músicas típicas que os mais velhos se esforçavam em expelir de seus pulmões. E tudo transcorria sob a normalidade de um dia de sol a pino, calor, festa e alegria. Tios, primos, avós, amigos da família e outros convivas.

Nós, ao contrário, dávamos prosseguimento a nossa orgia, dávamos vazão a nossos hormônios, a nossa pubescência.

O som da quadrilha lá fora chegava a entrar no quarto, impondo um novo ritmo à maneira como nos conjugávamos. Eram sôfregos os nossos movimentos e a cada gesto íamos perdendo um pouco mais o nosso fôlego. Ninguém lá fora admitiria, mas era fácil imaginar o que fazíamos ao longo daquele dia. Pedro amava Clara, enquanto eu amava Luíza; e ele amaria Luíza quando eu enfim voltasse a tomar partido de Clara entre os meus braços, debaixo da minha pele.

E Clara, antes asfixiada pela solidão da cidade, sabia que podia deitar feliz e tranqüila na fazenda, dormindo sempre com o pijama aberto à família.

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