ironia, ainda que tardia

Monday, November 06, 2006

Tiros no café da manhã

Daniel Soleil Noir

Era uma Brasília branca o carro que singrava a favela àquela hora da manhã. O motorista, um homem branco, alto e de cabelos pretos, mantinha os olhos atentos por cima do volante, enquanto acelerava em primeira marcha por uma rua sem asfalto. À margem esquerda do caminho, alguns moleques empinavam pipa sob o sol do mês de agosto, aproveitando o vento que os aproximava do céu. À direita, mulheres varriam a entrada dos barracos, sacudiam toalhas de mesa nas janelas, enquanto seus homens iam tomando um trago nos botecos.

No banco do carona estava uma loira com uma faixa vermelha sobre os cabelos e óculos escuros escondendo os olhos azuis. Portava um cigarro aceso que mantinha entre os dedos, com o braço esticado sobre o limite da porta do carro. Ansiosa, não conseguia esconder tanta ansiedade e levava o cigarro à boca de quando em vez. Tragava a fumaça com vontade e soprava-a para fora da janela, quase na mesma freqüência com que respirava. Quando lhe restava apenas a bituca, jogava o resto fora e aproveitava para checar a hora no relógio.

Nenhum dos dois sabia exatamente o que estava fazendo ali. Mas era aquela a missão que lhes cabia: estar às dez da manhã naquela rua, à espera de alguém que não sabiam quem era realmente. As informações eram poucas e desencontradas. Foram instruídos a pegar o carro às sete da manhã em um estacionamento no centro da cidade. Depois, teriam que dirigir até a favela, com o cuidado de sempre para que não chamassem atenção. Afinal de contas, também era desconhecida a procedência da Brasília que usavam naquele dia.

Uma gota de suor chegou a pender do sobrecenho de Caio enquanto ambos esperavam. Caiu sobre a perna da calça jeans surrada sem que ele sequer percebesse. Estava mais preocupado em conferir o retrovisor no teto para saber se alguém os vigiava pelas costas. Mas ninguém, a princípio, fazia questão de observá-los. E, para um alívio ainda que momentâneo, confirmou que nenhuma alma os havia seguido até ali. O que já era metade do caminho, segundo ele mesmo reconhecia, embora soubesse que a missão não estava cumprida. Faltava somente a chegada daquele que eles tanto esperavam.

Mas já eram dez e quinze e ninguém havia aparecido ainda. Nenhuma alma sequer havia dito a senha para Caio antes de entrar pelo porta-malas. Talvez o atraso fosse pequeno se a situação não fosse tão delicada. Estava a ponto de chegar ao final da rua, o que faria com que desse a volta pelo quarteirão de trás e pudesse retornar ao início da rua. Não poderia dar marcha à ré, pois isso seria o suficiente para chamar a atenção. Precisava seguir tudo como havia sido planejado e como mandava o bom senso nesse tipo de ação.

Quando o relógio marcou dez e meia, foi a vez de Simone bufar impaciente. O maço já havia chegado ao fim, ao contrário da espera, que ia se tornando aos poucos cada vez mais difícil. O sol passou a cair justamente sobre o pára-brisas, jogando sua luz nos rostos dos dois, que se esforçavam em se proteger daquilo. Era sol demais através do vidro. Espera demais ao longo da rua. E uma impaciência que estava prestes a dominá-los por completo. Simone, por exemplo, não se continha mais. Soltava frases disparatadas que tinham como objetivo dizer que não deveriam estar ali, que já não precisavam esperar mais.

No começo, Caio atribuiu a reação intranqüila de Simone a sua postura pequeno-burguesa perante as coisas, ainda que não tivesse pistas da verdadeira origem daquela moça. Não se furtava, porém, do desejo de imaginá-la como aquelas meninas de boa família que aproveitam a juventude somente para a busca de aventuras. Ele, ao contrário, se considerava um bom sujeito. Sabia que era um bom sujeito. Não havia como negar. Um bom companheiro, em suma. Mesmo que a beleza de Simone fosse capaz de sugestioná-lo...

Faltava quinze minutos para as onze quando Caio decidiu encostar o carro. Alguns dos transeuntes da favela já haviam notado o movimento estranho. Passavam homens sem camisa de um lado, velhos muito bem abotoados, cabelos penteados, velhas de avental, além de mulheres com crianças nuas dando seus primeiros passos sobre aquele chão de terra. Não dava para negar, portanto, o quanto eles não se encaixavam na paisagem e a permanência por um longo tempo só servia para aumentar a curiosidade alheia, o que, de fato, poderia ser fatal. Só a partir daí Caio notou que Simone bem que tinha razão.

Ela insistiu para que fossem embora. Os olhos cada vez mais se avizinhavam do carro. Uns não se intimidavam e perscrutavam o lado de dentro em busca dos rostos que ali estavam. Dos poucos carros que também passavam ao redor, era raro quem não encarasse a Brasília. Não que alimentassem uma certa desconfiança a respeito de quem eram os dois desconhecidos. Não chegariam a tanto. Talvez quisessem saber se na verdade se tratava de alguém ali do pedaço mesmo, ou coisa assim. Mas já servia para irritar Simone ainda mais.

Mais uma vez ela pediu que saíssem dali, agora com um tom de voz mais grave e sem os óculos escuros à frente dos olhos. Caio hesitou por alguns instantes, com as mãos sobre o volante da Brasília.Para ele, a cor dos olhos de Simone ressaltava a hostilidade que vinha da parte dela. Era como se, além da irritação decorrente daquela espera, ela também estivesse a censurá-lo por conta de um possível desejo que ele pudesse nutrir por sua bela figura. Só que ele também não evitou mostrar seu destempero ao lembrar as conseqüências que sofreria caso não cumprissem a tarefa e voltassem com quem deveriam buscar.

Foi o suficiente para que iniciassem uma discussão dentro carro e passassem a enumerar uma série de argumentos contra e a favor da permanência. O problema é que quanto mais tempo permaneciam parados ali, mais os riscos aumentavam, pior ficava a situação, e ao menos com isso os dois precisavam concordar. Seria melhor mesmo que fossem embora.

Eis então que surgiu um homem vindo na direção da Brasília. O rosto desconhecido aparentava ter mais de quarenta, com certeza, e caminhava com uma pressa mal-disfarçada. Também usava óculos escuros e parecia estampar no semblante o objetivo claro de chegar até o carro. E foi o que aconteceu. Ao perceberem sua chegada, tanto Caio quanto Simone silenciaram a guerra. Ele enfim chegou, disse a senha, e se aproximou do porta-malas, movimentando-se com cuidado, evitando dar as costas para a rua.

Quando Caio estava pronto para dar partida, dois outros carros vieram e fecharam as duas saídas da rua. Quatro homens, dois de cada lado, saltaram dos veículos com armas em punho, gritando para que os três deixassem a Brasília com as mãos para o alto. Enquanto isso, o recém-chegado, que já estava no banco de trás, apontou um cano calibre trinta e oito contra a nuca de Caio, pedindo que ele e Simone saíssem da Brasília sem gracinha alguma, caso contrário atiraria ali mesmo contras eles.

O homem estava crente de que não precisaria render a loira. Seria capaz de apostar que ela ficaria amedrontada e que não seria capaz de reagir. O problema é que Simone não se fez de rogada e, com o revólver na altura do seio esquerdo, atirou contra o tórax do desconhecido, que não fez mais do que desfalecer de repente, caindo com o rosto estupefato sobre o ombro de Caio.

Apesar do susto, e do sangue que encharcava o tapete do veículo, Caio tomou para si uma das metralhadoras que estavam abaixo de seu banco, escancarou a porta do carro subitamente e, usando-a como escudo, abriu fogo contra os homens que estavam na contramão. A primeira rajada não feriu ninguém e serviu somente para que eles atirassem em resposta. Uma das balas atingiu a perna de um menino que passava. As pessoas em volta se limitaram a correr para suas respectivas casas ou para qualquer abrigo que as protegesse.

Simone repetiu o gesto de Caio e abriu fogo contra os homens que vinham do outro lado. Atingiu o peito de um deles de primeira, enquanto, com a guarda aberta, não tomou um tiro por pura sorte. Os dois atiravam, aliás, com total convicção de que estavam sendo vítimas de uma emboscada. Só não imaginavam o que havia acontecido de fato. Se tinham sido enviados para resgatar um traidor, ou se o personagem desconhecido fora capturado e capitulado a dizer tudo, até mesmo o que não queria, para desmontar a ação.

De repente, outros tiros brotaram, não se sabe de onde, e deram cabo da vida dos quatro soldados quase que instantaneamente. Caio e Simone aproveitaram o intervalo em que as armas pararam de cuspir para fugir. Mas algo de irreversível havia acabado de se operar entre os dois. A sobrevivência gerou neles uma cumplicidade, justamente aquilo que menos esperavam. E assim já não precisavam mais dos pseudônimos. Seriam Lucas e Lucinha para todo o sempre.

1 Comments:

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]



<< Home