ironia, ainda que tardia

Thursday, January 04, 2007

Forever

Daniel Soleil

Era um dia de sol. E assim talvez fosse como um dia qualquer. Ele a beijou na boca, deu mais um sorriso e olhou novamente o mar, que quebrava na praia. Pelo seu semblante leve, parecia que logo sairia correndo em direção às ondas, jogando-se de peito aberto contra a água. Mas antes que desse o primeiro passo, procurou por alguma cumplicidade nos olhos dela. E ao perceber exatamente o que desejava, tomou nas mãos um galho de uma árvore morta e escreveu na areia, em letras grandes, o quanto estava apaixonado por ela.

Enquanto ele cumpria sua tarefa, contraindo músculos e limpando a face do suor que lhe escorria da testa, ela o contemplava embevecida, embora ainda apenas intuísse o resultado daquele gesto tão repentino.

Estavam os dois corpos já bronzeados, quase parte daquela paisagem nascida de uma praia deserta, mas amparada pela densa vegetação que se estendia por trás da longa faixa de areia. Não havia testemunhas contra eles. Estavam livres para que fizessem exatamente o que quisessem. Até mesmo a nudez lhes seria perdoada. E mesmo a frase que ele se esforçava em escrever logo se apagaria, quando o vaivém da maré aos poucos engolisse uma parte da praia.

Ao terminar a escrita, parou alguns instantes para que ele mesmo pudesse observar com calma o que havia acabado de fazer. Seus olhos brilharam então diante da perfeição da caligrafia e buscaram rapidamente os olhos enternecidos da amante. E com a visão de sua boca vermelha, ele mais uma vez quis beijá-la, escorrendo uma das mãos por seus quadris e deixando a outra atada à cintura sinuosa da mulher. Um gesto completava o outro, da mesma forma que os dois se completavam debaixo daquele céu aberto e do sol escaldante. O resto pouco importava, pois sequer descera a serra com eles.

Havia uma casa acanhada atrás do casal, quase escondida no meio do mato. Para os pescadores do outro lado da baía, ela não passava de um ponto branco no meio do nada. Era onde, contudo, os amantes estavam hospedados. Chegaram no dia anterior, ao fim da tarde. Só tiveram tempo de desfazer as malas e colocar em dia a quantidade de sono que lhes faltara ao longo da semana que encerravam. A diferença é que agora retornavam ao leito, mas não para dormir. Uniriam o amor etéreo, que a palavra consagra, ao amor da carne, que o corpo consuma. E fariam isso até que a justa medida do sexo fosse capaz de uni-los em um só fôlego, ou até que esse fôlego acabasse.

A ação do sol havia dourado também os cabelos deles. Os corpos preenchiam-se com perfeição e confundiam-se na forma – como se a natureza tivesse sido capaz de juntá-los antes mesmo que nascessem. Mas sabiam, porém, que o destino não permitiria que ficassem muito tempo juntos. Pois cada um precisava viver sua própria vida quando terminassem aqueles dias de férias. Estavam somente gozando o direito de sentir o sabor do efêmero e guardando espaço na alma para aquilo que chamamos de memória. Não precisariam nem de fotos para que pudessem lembrar. Até porque não poderiam deixar vestígios. Para eles, lembrar seria mais que suficiente.

A casa abandonada era a morada para o pouso do casal, era o abrigo daquele amor proibido. Do lado de fora, a natureza permanecia a mesma, virgem, intocada. Uma gaivota pairava rente à superfície da água, enquanto outras duas, no horizonte, voavam em sincronia, as asas batendo simultâneas, antes que, também juntas, mergulhassem para buscar comida. O sol, por sua vez, deixava as cores mais vivas, como o verde na copa das árvores, o límpido azul, quase translúcido, do mar. Ao fundo, alguns pescadores ligavam os motores de seus barcos. Outros preparavam as redes que garantiriam a féria do dia. Mas a verdade era que, de onde estavam, nunca poderiam notá-los.

Existia uma sensação de liberdade que talvez nenhum deles houvesse sentido antes. Nada mais justo para que aliviassem mais uma boa dose de cansaço. O silêncio ao redor se quebrava somente com o vento soprando as folhas ou com os outros pássaros que também alçavam vôo nos arredores. E tudo isso servia para ajudá-los; os dois amantes esgotados, respirando o ar quente da densa atmosfera da libido que ainda impregnava a alcova graças ao amor que haviam acabado de fazer àquela hora da tarde. Pareciam mesmo sob o efeito de alguma espécie de sonífero; a cabeça dela dormindo em paz sobre o peito dele, enquanto o pênis derreado do amante pendia sobre o início da coxa esquerda.

Quando começou a chover, dois dias depois, ela decidiu ir embora. Conseguira repetir o clímax do primeiro dia, mas precisava adiantar o retorno para que não notassem sua ausência por muito tempo. Queria evitar que desconfiassem de seus propósitos ilícitos, implícitos àquela viagem. Antes de embarcar, olhou com bom humor para a declaração de amor que persistia escrita sobre a areia, apesar da chuva, do vento e da água que se esforçavam em apagá-la. Sentada sobre a popa do pequeno barco, ela acertava com a palma da mão a textura do vestido que reservara especialmente para a despedida. E sequer imaginava que aquela seria a última oportunidade que o destino reservara para que se vissem.

Ele, ao contrário, imaginava de certa forma que jamais se veriam de novo. Era até uma intenção que guardava bem no fundo de si. E quando notou que a frase não havia se apagado com o tempo, achou estranho que ela ainda continuasse exatamente do mesmo jeito que havia escrito dias atrás. Não conseguia encontrar uma razão cabível para que isso ocorresse, porém preferia continuar acreditando que a água do mar logo seria capaz de arrastá-la para o fundo do Atlântico. Talvez fosse só uma questão de tempo ou parte de uma peça que o destino talvez quisesse pregar contra o segredo daqueles dois amantes.

Um mês depois, a frase persistia escrita sobre a areia. Não era possível... As letras prosseguiam com o mesmo relevo, e a água da maré, que às vezes chegava a alcançá-la, parecia respeitá-la de algum modo. Aquilo que podia de haver de mais efêmero naquela praia parecia flertar com a eternidade, registrando para sempre um sentimento que era passageiro, na verdade.

Ele acordava todos os dias na esperança de que sua declaração de amor um dia se apagasse. E se decepcionava a cada vez que colocava os pés para fora da casa. Só iria embora quando já não houvesse nada mais escrito, mas a frase se mantinha intacta, como se tivesse sido obra da própria natureza daquela ilha. Quis um dia ocultá-la com os pés, com as mãos, mas qualquer esforço era vão. Ela se tornava um espectro do que um dia havia sido, até que a ação do imponderável lhe restituísse a forma original, do jeito exato como havia sido cunhada.

Ninguém, por outro lado, tinha o costume de ancorar naquela praia. E mesmo que isso viesse a acontecer, ninguém saberia de quem eram os nomes deixados como rastros na areia. Mesmo assim, ele permanecia assombrado com o que existia de insólito naquilo tudo. E ainda que não conseguisse depreender a princípio, havia sim uma explicação cabível para aquele milagre. Nada no mundo seria capaz de apagá-lo. Nunca. Nem depois que um dia os dois amantes morressem, enfim.

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