ironia, ainda que tardia

Wednesday, January 10, 2007

Polaroid

Retratos instantâneos da mediocridade humana

Daniel Soleil

Um falso Gandhi, em sua fome autêntica, come migalhas de pão velho na calçada, sentado sobre um colchão raso, ao lado de outro faquir.

Na rua de baixo, uma gorda prostituta joga os cabelos loiros, fulgurantes, contra o rosto de outra meretriz, enquanto um bêbado observa as duas, sem que possa ter na sua companhia a mulher que sempre quis.

A pétala de uma violeta flutua no ar, sem que a bicha perceba a dádiva com que a natureza está prestes a coroar sua cabeça.

O motoqueiro caído no meio da rua apenas finge sentir a dor que sua mãe deveras sente ao vê-lo desperdiçar sua vida na indigência de todos os dias.

Roubado sem perceber, na saída da estação do metrô, o padre roga aos céus o direito de voltar são e salvo ao celibato, mesmo tendo deixado a batina na paróquia, guardada quase como peça de museu.

Um homem passa com uma criança no colo, tentando velar com a infância do filho a desgraça escrita nos muros por onde passa.

Outro carrega no bolso do paletó uma caixa com um circo de pulgas, que se encarregam de arrumar o picadeiro enquanto não chega a hora de bagunçar o coreto.

O dono do bar solta mais uma dose daquela que matou o guarda para o bandido que acabou de matar o maldito do meganha intrometido, que apareceu bem na hora H para interromper o assalto.

Há também quem atravesse a rua fora da faixa de pedestres, em plena displicência, num desapego em relação à vida - a mesma vida que a cada minuto se esvai mais e mais por entre os finos dedos da mão.

Do outro lado da cidade, a velha sorve uma xícara de sopa quente e já se apruma no sofá para assistir a novela das seis.

No andar de cima, uma vizinha coloca as panelas no fogo para preparar a comida dos filhos que não devem vir, e que talvez nem morem mais ali. Ela, na verdade, nem se lembra direito do que aconteceu.

O que ambas não sabem é que estão seguras em seus respectivos lares, longe da loucura de um mundo que se apressa em acabar.

Usufruem a mesma paz dos enfermos internados. Longe da fúria dos pneus, dos faróis acesos como olhos vermelhos, convalescem sobre os leitos dos hospitais, sem terem mais para onde ir.

Protegem-se também os milionários, arrotando postas de salmão que comeram na hora do almoço, com os olhos cravados em seus notebooks e um dos dedos mexendo pedras de gelo submersas em uma azeda dose de uísque.

On the Rocks...

Senhoras de cabelos roxos saem às ruas do bairro a exibir seus cães. Há uma infinidade de raças passeando lépidas junto ao meio-fio: puddle, lhasa apsu, shnauzer, shih-tzu, spitz, yorkshire, maltês, bichon frisé... Seguram as guias em suas mãos pálidas, de unhas feitas, enquanto seus mascotes cagam as calçadas com fezes da mesma cor de seus cabelos rarefeitos.

Meninos trocam beijos lânguidos com garotas pelo bairro. Outros dão amassos nos elevadores ou fodem empregadas nos degraus das escadas de emergência. E elas, assim que apagam o incêndio daqueles arroubos adolescentes, saem dos prédios com a féria na bolsa, prestes a serem roubadas nos pontos de ônibus ao redor.

Falsas aristocratas despejam ordens nas costas das babás que cuidam de seus filhos, trocam falsos segredos de alcova em conversas inúteis ao telefone, sem desconfiar, contudo, que seus maridos deitam nas camas de outras putas.

Falsas mulheres desfiam memórias de amores passados, vivem das recordações das mulheres que outrora foram e que já não são mais. Mas não se importam, desde que possam continuar observando fotos antigas e lembrando momentos de um passado distante – assim como elas próprias estão distantes da realidade.

Patrões fingem que mandam, funcionários fingem que obedecem. Existe um momento, porém, em que os lados opostos se unem: ao desejarem os seios da moça dadivosa do escritório, aquela que singra os corredores com seu olhar oferecido, sua beleza arrogante, os cabelos tingidos e seu perfume barato.

Ai, meu Deus...

E Deus assiste a tudo isso de boca calada, de modo a não incomodar a mediocridade dos mortais.

E tudo se repetirá da mesma forma no dia seguinte, mesmo que o falso Gandhi não esteja mais a comer suas migalhas, e que um cão sarnento amanheça a roer os ossos do faquir, morto de fome junto à sarjeta.

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