ironia, ainda que tardia

Tuesday, February 06, 2007

Amor calado

Daniel Soleil

O amor é a arte daquilo que não se diz. É o que não se fala. O que não se pronuncia. É aquilo que preenche o espaço entre uma palavra e outra. O amor é o engenho daquilo que se deixa nas entrelinhas. É um sentimento que se traduz calado, a palavra que se cala no momento mais oportuno. É o que acontece durante o silêncio e que, ao mesmo tempo, silencia a palavra para que esse mesmo amor não se quebre, pereça, e assim se perca para sempre.

O verdadeiro amor não é aquele que se declara à primeira vista. O verdadeiro amor se cala quando se percebe amor. O verdadeiro amor é aquele que se cala e não se declara... Ele bate mudo dentro do peito e não se faz ouvir. Prescinde das palavras quando elas são menos necessárias. E se faz presente nas frases que não são ditas, naquelas que se transformam em olhares, em meneios, gestos, temores, em sorrisos. O amor é o exato momento em que as palavras emudecem.

E eu mesmo fiquei mudo quando percebi que era amor o que eu sentia por ela. Não havia mais o que dizer. Não que as palavras já não fossem mais suficientes. Não era este o caso. Elas bem que poderiam descrever aquilo que eu sentia, dando conta por completo daquele meu sentimento. Mas havia o risco de que elas quebrassem o encanto e partissem esse amor antes mesmo que ele fosse correspondido. Eu precisava conquistá-la fora do domínio das palavras, como se o meu amor fosse o pretexto para um jogo. Um pretexto para que a interpretação do movimento das peças dissesse mais que qualquer frase, que qualquer declaração de amor.

Era estranho vê-la sem que eu pudesse lhe dizer algo. Era estranho dissimular o sorriso de quem se cala subitamente. Por outro lado, embora eu ainda nem soubesse, era por intermédio da verdade que se inscrevia nos meus olhos que eu comunicava o que sentia. A diferença era que ela precisaria de muito mais tempo para compreender tudo aquilo que eu lhe omitia. Ela precisaria, a princípio, sintonizar seus olhos com os meus olhos. Mas eram raros os instantes em que isso acontecia, o que demandaria mais tempo ainda. Isso, porém, não importava.

Não me incomodava aquela brincadeira de amar sem o auxílio das palavras. Muito pelo contrário. Eu gostava dos caminhos que tomávamos dia após dia. Até dos nossos desencontros eu gostava, quando nos perdíamos um do outro em mal-entendidos, quando deixávamos de entender tudo aquilo que não se dizia exatamente, aquilo que não dizíamos um para o outro. Era assim que nos dávamos as costas e saíamos perdidos em meio a um enxame de dúvidas que também se calavam. Dúvidas que, se fossem ditas, poderiam matar esse amor.

À medida que nos calávamos, no entanto, eu sentia que esse amor aumentava. Fermentava e fremia feito uma bomba, devidamente alocada junto ao coração. Eu chegava a ouvir a contagem aberta dentro do peito e, mesmo que eu soubesse que isso não passava de ansiedade, temia que esse amor explodisse antes da hora, em uma profusão de palavras inúteis que poderiam ser traduzidas como alguma espécie de desespero, como uma loucura passageira que se disfarçara de amor. Mas daí então eu sossegava e voltava à tranqüilidade daqueles que se calam por amor.

Eu chegava a aproveitar o silêncio para contemplá-la com mais calma, dedicando-me aos detalhes mais improváveis, aos gestos mais discretos e mesmo às palavras que ela dirigia às outras pessoas. E desse modo eu também buscava saber o quanto ela pensava em mim, de que maneira eu habitava os seus pensamentos – seus sentimentos, inclusive. Era um exercício árduo, que exigia de mim uma atenção demasiada, encontrando uma hora um sorriso fugaz, e em outras a alma singela de alguma poesia.

Passados alguns meses, percebi que este amor poderia encontrar alguma vazão no que eu pudesse escrever a seu respeito. E isso explica a razão destas linhas. Era um modo de fazer uma concessão à palavra, desde que eu pudesse contar com a garantia de que ela permanecesse escrita e, ao mesmo tempo, oculta. Sem o risco de que caísse em mãos erradas. Seu registro deveria se perder nas folhas de um caderno guardado ao fundo de uma gaveta fechada, num armário antigo, num quarto trancado, um cômodo sem utilidade. E sua existência não passaria de um detalhe desconhecido. E assim até as palavras deveriam se calar.

E foi calando que eu também me dei conta de que ela também me amava. Ela me amava – em sua mal-disfarçada surpresa ao me ver de novo, na explícita saudade que se antecipava a cada despedida, no modo como ela respirava ao meu lado, na maneira como arfava, fingindo um sorriso sem jeito na hora em que mais queria dizer alguma coisa. Mas ela também não podia dizer nada. Mesmo que esse fosse um amor recíproco.

E foi engraçado o momento em que eu percebi isso. Era como se eu tivesse condições, a partir dali, de antecipar todos os movimentos do seu jogo. Era como se eu soubesse que cartas ela tinha nas mãos e quais meneios ela podia lançar à mesa. Tudo, claro, sempre sob a aura do imponderável – pois todo amor que se preze, no começo, é imprevisível. Não nego, contudo, o quanto era valioso saber aquilo. Eu poderia manter meu amor calado durante a justa medida de tempo que nos separasse da nossa comunhão – comunhão de corpo, alma e coração.

Ela, por sua vez, ainda não sabia que eu a amava. Sua intuição ainda não havia alcançado o que eu apenas sugeria, sem que eu pudesse dizer qualquer coisa em favor do meu amor. Para ela, o que se inscrevia nos meus olhos poderia não passar de carinho. Ou talvez fosse ambíguo demais para que interpretasse com exatidão. Um amor que queria se revelar, mas que por enquanto se restringia ao terreno das entrelinhas, o sagrado espaço que as palavras não profanam e em que o silêncio é uma dádiva, não um castigo. E isso era o suficiente para deixá-la insegura a meu respeito.

Essa insegurança aparecia em seus lábios entreabertos, nos gestos que não se completavam quando estávamos próximos, no meio-sorriso que não se abria por completo. Ela tinha um certo receio de se sentir vulnerável e escondia os próprios olhos sempre que achava necessário. Mesmo quando nos abraçávamos, ainda como amigos, ela se recolhia com prudência, recolhendo os braços e contraindo o resto do corpo, colocando-se de novo a uma distância segura, protegendo-se de um beijo que eu lhe pudesse roubar – e que, segundo ela, poderia não ter nenhum significado relevante para mim.

Mas que culpa eu tinha se ela não conseguia identificar a quantidade de ternura que morava aqui dentro? Ou será que eu também me protegia ao tentar dissimulá-la? E assim construía mais que uma aura de mistério, mas uma ambigüidade que sempre levaria à dúvida, qualquer que fosse a pessoa que olhasse para mim? Eu tinha que expressar com mais clareza que os nossos desejos eram equivalentes. Eu precisava revelar, por intermédio de um sorriso, que eu não desejava mais do que ela também queria. Só que se eu dissesse qualquer coisa, ela poderia imaginar o contrário, e diante da intensidade que se abrigasse em cada palavra, poderia entender justamente o oposto do que eu quisesse dizer.

Sem as palavras, nossos dilemas se tornavam mais íntimos, mais intensos. Ela, pelo menos, compartilhava suas dúvidas com alguma amiga que lhe servisse de confidente. E quanto a mim? O meu amor era um segredo que eu não ousava pronunciar. E não o pronunciava a ninguém. Se eu não o escrevesse, e dessa forma o confessasse a uma folha de papel, eu o manteria trancado dentro do corpo como se ele fosse uma espécie de dor. Mas isso eu não queria. A dor e a tristeza não poderiam fazer parte do nosso jogo. Pois o amor que dói não é amor. É paixão. E toda paixão sempre me parece pouco. Pouco, e quase sempre efêmero.

Inúmeras foram as ocasiões em que eu me perguntei em silêncio se calar não seria deixar a realização do que sentíamos unicamente a cargo do destino. Será que não havíamos encontrado neste amor calado uma desculpa para que omitíssemos nosso sentimento? Escolhendo a tranqüilidade de um amor secreto em oposição à chance de uma possível repulsa – embora eu já soubesse que ela também nutria o seu amor por mim?

Nossa retórica muda, entretanto, trouxe suas respostas antes que tantos questionamentos pudessem se transformar em desespero, elevando nosso grau de ansiedade à enésima potência. E tudo se precipitou no instante em que ela percebeu a reciprocidade desse nosso amor calado, no cravado minuto em que ela descobriu que o amor que cala é o mesmo amor que consente.

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