ironia, ainda que tardia

Monday, January 29, 2007

Redivivo

Daniel Soleil

Ferido de morte, o general estampa na farda uma extensa mancha de sangue e segura nas mãos débeis um odre carregado de vinho tinto. Ele segue à procura de uma campa em que possa descansar em paz e usa as últimas forças de seu corpo exangue para o cumprimento dessa derradeira missão. Está morto e tem plena consciência disso. Mas precisa ainda encontrar um lugar que lhe abrigue a carcaça para o descanso eterno que Deus concede aos pecadores.

Ele continua andando, embora manque sobre aquele bucólico campo de grama verde e viva. Olha por sobre as sebes e enxerga ao longe as belas colinas pelas quais suas tropas haviam descido antes de tão malograda batalha. Talvez esteja nesse caminho de volta o local de sua última morada. E se entregaria ao júbilo completo por isso se não visse os corpos de seus soldados mortos enfileirados sobre o chão e sob o bico das aves de rapina que já se aglomeram ao redor.

Quando percebe que as suas poucas forças estão prestes a se esgotar, é no vinho que ele se socorre, espremendo o couro com força suficiente para que esganasse um bicho. Mas não há animal sequer que ele possa matar a esta altura. Precisa cumprir este desígnio. Tem que usufruir o direito de encontrar um sepulcro que lhe convenha, onde possa recostar sua carne e cerrar os olhos para todo o sempre. Aquele era um direito garantido pela alta patente que ele ainda ostenta pregada sobre o seu peito sem vida.

Existe a possibilidade de que encontre ali mesmo o seu último pedaço de chão. Basta andar mais alguns metros e em breve terminaria de apodrecer debaixo daquele sol a pino. Também pode voltar ao caminho antes empreendido por suas tropas e plantar seu cadáver em pleno território inimigo, de forma a atraiçoar o exército alheio mesmo depois de morto. Mas a terceira hipótese talvez não seja menos tentadora: subir novamente as colinas do passado e voltar para sua antiga casa, para os braços da família, que com demasiada tristeza depositaria seu corpo no terreno aos fundos da caserna.

Não raro o general se vê surpreendido pela imagem do ataque que ceifou sua vida. Na ocasião exata, ele mantinha os braços cruzados sobre o peito, enquanto assistia da retaguarda seu exército perecer diante dos rivais. Mesmo assim, permaneceu impassível por segundos eternos, sem perder a pose, ao passo que seus peões saíam do jogo e eram despejados mortos para fora do tabuleiro. Até que sentiu um tiro violar seu peito e interromper com um zunido ensurdecedor o ritmo das batidas de seu coração feito de pedra.

Não lhe restava o que fazer, senão cair e entornar seu sangue ainda quente em cima daquele solo fértil.

Bastaram alguns minutos para que um anjo nu, vestido de poesia, pousasse junto ao seu corpo de general. Sua tarefa era reanimar o cadáver do homem, concedendo-lhe mais alguns momentos e uma boa quantidade de vinho que lhe restituísse o sangue, ainda que por algumas poucas horas.

Ao recobrar a consciência, o general já sabia, por alguma espécie de milagre, qual seria a última missão que lhe cabia. E ergueu-se com arbítrio totalmente livre para que escolhesse o local do seu repouso final.

Apesar de contar com pelo menos três opções, o general ainda segue a sua marcha a esmo. Gira em falso em torno de si próprio, esperando que aquele céu azul não lhe sirva de mortalha, assim como este mesmo céu faz agora com os seus soldados. Inúmeras são as dúvidas que pairam em volta de sua cabeça ferida com um talho aberto após a queda. E o agravante, neste caso, é que talvez nem mesmo a sua morte possa ser tomada como uma certeza.

Eis que um vento súcio resolve soprar junto ao seu ouvido uma idéia de um oportunismo vil. Se quisesse, poderia driblar a morte e ir para onde desejasse, vivendo como melhor lhe aprouvesse. Não precisaria de nada - a não ser de mais vinho com que pudesse encher aquele odre, assim como suas artérias e veias esvaziadas. E o simples fato de cogitar uma mudança no seu destino já lhe provoca mais sede, fazendo com que volte a buscar sua verdade no vinho - o sangue de Cristo, que nele se transforma em vida, uma vida provisória, uma eternidade falsa que se prolonga, ainda que seja morte.

Seus olhos sobressaltados encontram então uma vereda aberta entre os mortos, uma passagem que pode levá-lo a uma lagoa protegida daquela mácula feita de sangue. Ele segue adiante e seus passos – desconjuntados, tortos, imprecisos - o levam para o que pode ser um último banho. Sua intenção, porém, é outra. Precisa se livrar do sangue que impregna a sua farda, precisa se livrar daquele cheiro mórbido que toma conta do seu corpo. Pois se realmente quer seguir os conselhos do diabo, e permanecer neste mundo apesar da própria morte, não pode deixar nenhuma pista de que, na verdade, esteja morto.

Mas no momento em que espera ver o reflexo da sua própria imagem na superfície das águas claras, o general não se reconhece. Ele vê algo que não se define, que não corresponde à realidade. Mesmo que esteja abatido e modificado após o tiro que lhe arrombara o peito, seu semblante se mantém e ninguém mais desavisado seria capaz de lhe reconhecer a ausência de vida.

Enganado pelas águas, é neste momento em que a morte lhe tira o pouco de vaidade que lhe restara. Sem ela, já não tem motivos para enganar seu destino. Está destituído da única coisa que fazia com que se mantivesse vivo e com o comando impávido sobre suas tropas nas palmas de suas mãos. Só lhe resta resignar-se à finita busca de seu próprio túmulo.

E sem ânimo para continuar procurando, o general se atira contra a lagoa e submerge no ventre daquelas terras, até morrer definitivamente na esperança de renascer um dia em uma vida completamente nova.

2 Comments:

  • Olá,
    Cá estou eu de novo para prestar a minha homenagem de beleza,
    Cada dia que passa gosto mais de visitar o seu blog é fantástico e tem me ensinado muito.
    Obrigada pelo ensinamento.
    Beijinho
    Bem-haja
    Conceição Bernardino

    http://amanhecer-palavrasousadas.blogspot.com

    By Blogger Conceição Bernardino, At 7:35 AM  

  • Olá,
    Sinto que a amizade vai nascendo,
    Cada palavra que me oferece é uma dádiva de inspiração, podemos sentir de maneira diferente, ainda bem mas como sabe bem sermos lidos e comentados por alguém.
    É isso que faz a grande diferença sermos unos perante tanta subtileza.
    Beijinhos
    Obrigada
    ConceiçãoB
    Uma boa semana
    http://amanhecer-palavrasousadas.blogspot.com

    By Blogger Conceição Bernardino, At 5:57 AM  

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