ironia, ainda que tardia

Friday, January 26, 2007

O Sol que Nunca se Põe

Daniel Soleil

A luz do sol, ao sol se pôr, parece mais forte do que no restante do dia, mas só parece. Apenas ofusca os olhos de quem olha para oeste e doura a fachada dos edifícios que despontam na paisagem da cidade. No verão, quando anoitece mais tarde, é que torna-se possível se deter com mais calma nesse instante, observando-se o sol se pôr enquanto a claridade se desloca, dilata as pupilas de quem vê e faz com que o restante das coisas perca ainda mais importância.

Era nesse momento então que nós dois nos despedíamos. Ela estampando um sorriso tão claro como o próprio sol, enquanto eu dissimulava uma certa frustração, embora houvesse a certeza de que voltaríamos a nos ver no dia seguinte. Antes, porém, a noite cairia aos poucos, até que o céu, coberto de nuvens e sem estrelas, pudesse ser confundido com uma espécie de desesperança. Uma desesperança ainda que passageira, pois o dia levaria o tempo necessário para que logo amanhecesse, como em todos os outros dias.

Quando eu chegava ao apartamento, ainda podia ver a forma como o sol invadia a sala, o modo como a sua luz se deitava sobre o piso, sobre os móveis e se recostava na parede do lado oposto. Mas aquele espetáculo durava pouco e não tardaria a se concluir, e tudo voltaria a ser sombra, como sempre acontecia. Bastava um único minuto de distração e o instante se esvaía completamente. Era efêmero, ainda que ao mesmo tempo fosse tão cotidiano. E o fato de ser assim tão corriqueiro era o que o tornava passível de ser esquecido logo a seguir.

Mas desde que a vi pela primeira vez passei a querer cada vez menos que o sol se despedisse assim. Comecei a desejar que ele se detivesse por alguns minutos mais e não fosse embora sem que antes eu tivesse a oportunidade de abraçá-la ou mesmo contemplar toda a quantidade de ternura que provinha daqueles seus olhos castanhos. Nossa rotina, no entanto, abreviava as minhas chances e nossos momentos pareciam ínfimos diante do que poderiam ser se tivéssemos um pouquinho mais de tempo para nós dois, para o que sentíamos dentro de nós.

Até quando me aproximava de beijá-la, o tempo era mais rápido do que eu e roubava de mim o direito àquele beijo. Era ele o responsável por tornar inútil a fruição que eu dedicava àqueles olhos, o esforço em vão de querer decifrar os desejos que ainda se escondiam no fundo do peito dela. E mesmo o ensejo para um convite também se perdia, umas vezes por causa da falta de coragem, noutras porque ela se virava de costas, pronta para que tomasse a pé o caminho de casa, mantendo no rosto o sorriso estampado que lhe revelava o espírito.

Se ao menos ela não se importasse com o fato de que o sol se punha, poderíamos continuar juntos, plantados naquela esquina, enquanto o dia fosse perdendo a sua luz e a noite fosse chegando de mansinho. Afinal, quem precisaria do sol depois de ter nascido com a dádiva de poder emitir luz própria, trazendo no rosto uma luminescência digna de todo o fascínio que eu lhe prestava? Mas ela talvez não soubesse disso, ou fingia não saber, e voltava a se despedir com um beijo jogado no ar, um piscar de olhos e um breve aceno de mão.

Teria de haver algum lugar em que o dia não terminasse como todos os dias, e o sol não se escondesse como que para não testemunhar a realização daquele meu sonho. Uma outra cidade, um outro país, um outro mundo, quem sabe. Podia ser um filme, a página de um livro, o anúncio de uma revista. O que quer que fosse já seria suficiente para alimentar em mim a esperança de que o meu amor por ela não seria interrompido pelo término das horas que o destino nos concedia para que ficássemos juntos apenas ao longo do dia.

E de repente percebi que a melhor receita estivesse talvez na poesia que vinha de sua presença. Era preciso transferi-la para uma folha de papel, com a finalidade única de perpetuá-la, perpetuando também a sua presença junto a mim. E assim poderia amá-la mesmo quando ela se recolhesse, recorrendo à alegria que sua lembrança me despertava, ao som da sua voz que continuava ressoando nas paredes dos meus ouvidos, como música tocando na minha cabeça.

E na proporção que eu ia costurando os primeiros versos nas folhas do antigo caderno de linhas tortas, tendo em punho a ponta de uma caneta de tinta azul, ela ia ficando cada vez mais nítida, como se surgisse na forma de um desenho ou como se fosse uma fotografia revelando-se aos poucos na sala escura. Terminadas as estrofes, a respectiva leitura ganhava um valor bem próximo ao da sua companhia, e as palavras que eu escrevia se equivaliam a ela em lirismo.

No dia seguinte, novamente quando já estávamos para nos despedir, ousei abraçá-la com força, colocando-a bem perto do meu peito.

- Você é o sol que nunca se põe. Tem o dom da alegria infinita e um sorriso que nunca se acaba.

A partir daí, ainda que cada um tivesse seguido o seu rumo, nós dois sabíamos, na verdade, que aquele dia nunca mais terminaria.

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