ironia, ainda que tardia

Tuesday, January 16, 2007

Amor de Samba

Daniel Soleil

Quem é essa mulher feita de samba, descendo a ladeira em pleno sábado de Carnaval? Vestida com uma alegria insuspeita e iluminada pela luminescência do próprio semblante? Quem é a loira que insiste nesse gingado, nesse balanço com os pés descalços tocando leves a superfície dos paralelepípedos que se enfileiram ao longo do leito da rua? Quem é essa cabrocha que não se cansa de ser feliz? Eu precisava saber. Eu tinha que interromper os seus passos, me imbuir de toda coragem e perguntar o seu nome de uma vez por todas.

Mas enquanto ela gingava, e eu olhava em sua direção, a essência de sua alma já flertava com a ponta do meu olfato, um feitiço sobre o qual Deus só lhe concedia o direito durante aqueles dias de sol. Ela então me olhou de banda, fingindo alguma desconfiança e escondendo um breve sorriso no canto dos lábios. E não se fez de rogada ao me fitar mais acintosa, me chamando sem medo com o dedo indicador, com o sorriso desfeito e a boca no formato de um convite.

Deixei o posto que guardava junto a um poste de luz e virei mais um entre os passistas que dançavam na frente das casas. E foi no samba que eu também me aproximei dela. Arrastando os pés com a alegria sacudindo as cadeiras e a bacante flutuando charmosa, leve e vistosa, vindo num trote célere para cima de mim. Quem é ela, meu Deus do céu? Eu precisava saber. Hesitar talvez fosse fatal. E poderia fazer com que ela sumisse no meio daquele turbilhão de gente, terminando nos braços de outro folião um pouco mais esperto, ou que pelo menos a soubesse levar com graça, só no sapatinho.

E eu a dominei primeiro pelos quadris. Era possível sentir-lhe o samba sambar por baixo da pele, mesmo quando ela estava parada. E logo que eu me dei conta de que ela estava assim tão perto, seu fôlego se lançou de encontro ao meu e ficamos sem ar durante aquele momento eterno, que guardaríamos em nós para o resto de nossas vidas. Era um beijo etéreo aquele beijo, feito com a mesma matéria-prima a partir da qual nascem os sonhos. Era o teorema da felicidade transformando nossa teoria em prática, escrevendo em poesia o enredo do nosso samba-canção.

Havia um calor brotando dos nossos poros, mas nada que fosse insidioso o suficiente e que nos inflamasse a caminho da avenida. Tudo não passava de uma fantasia elegante - embora já começasse a ser também uma espécie de amor que latejava dentro de nós e que aumentava o ritmo dos nossos corações batendo em uníssono. E de mãos dadas seguimos pelas ruas cheias, trocando novos beijos a cada esquina, trocando abraços sob os mastros das bandeiras, singrando becos e outras ruas feitas de festa.

Era uma infinita benção que o nosso idílio fosse acompanhado pelos instrumentos daquela folia toda. E que mesmo o choro da cuíca fizesse a alegria dos passistas. As palmas de suas mãos esquentavam os tamborins e os passos das mulatas marcavam a cadência da avenida e perpetuavam na pista a linhagem dos bambas que desciam dos morros vestidos na melhor estampa, que a respectiva nobreza lhes conferia antes mesmo de nascer.

A hora ia passando e o sol, que antes pairava o seu sorriso sobre nossas cabeças, ia se escondendo devagar nas costas da favela. Em breve estaríamos por conta somente das estrelas que despontassem no céu, por conta do destino que o céu se atrevesse a escrever à nossa revelia. Mas era possível notar a luz dessas mesmas estrelas rivalizar com o luxo dos vestidos de cetim, das purpurinas, dos enfeites, das lantejoulas, das plumas e dos paetês. Rivalizar com os brios do ritmista e com o esplendor da paixão calada que até então se insinuava apenas nos olhares entre mestre-sala e porta-bandeira.

E nós fazíamos pose na passarela, gingando ínfimos ao lado das alegorias, vendo os destaques levitarem sobre os carros coloridos, sambando com os pés mais próximos das nuvens. Nós mesmos talvez fôssemos semideuses, renascidos na fina flor daquele samba: os corpos seminus, a felicidade indisfarçada, a brancura na tez, mas a alma de mulatos. E nossas bocas entreabertas se precipitavam em novos beijos, em novos toques de lascívia que fluíam conosco ao longo do desfile. Íamos tomando partido um do outro, sob os olhares que nos testemunhavam a partir dos camarotes apinhados de turistas.

Maravilhosos também eram os momentos em que ela ria, acendendo no rosto um sorriso infinito, uma alegria que transbordava a ponto de fazê-la chorar de júbilo, imersa num contentamento sem fim. E só nesse instante eu abdicava do direito de beijá-la e evitava o erro de interrompê-la na hora em que ela mais parecia um anjo, quando mais revelava a criança escondida no fundo de si. E sorria através dos olhos, que resplandeciam ao me contemplar de perto, ao sentir minha voz grave chamar-lhe com amor ao pé de um dos seus ouvidos.

Se era amor, foi paixão à primeira vista. Era amor de samba. Indescritível como o sentimento de quem ama. E que nasceu tão de repente, encontrando, sem mais por quê, algum abrigo bem cá no fundo do meu peito.

Só que fiquei um bom tempo sem vê-la depois de quarta-feira. Subiu o pano e ela sumiu quando acabou a brincadeira, quando a folia se recolheu para o fundo das casas e deixou baldia a extensão da avenida. O que era festa agora é desencanto. O que era sonho hoje é pesadelo. Um terrível receio de jamais vê-la, um medo triste de ter que esquecê-la. Pois eu não me contentaria com a hipótese de guardá-la apenas na memória, recordando a nossa alegria nas praças, quando na verdade eu queria tê-la de novo entre os meus braços.

Eu tinha que procurá-la, mesmo com a desesperança e a chance de morrer na praia - embora não soubesse direito por onde começaria a minha busca.


E a encontrei de novo onde menos esperava (na minha vida), com os pés se equilibrando no salto, o traje indefectível, o mesmo sonho brilhando nos olhos. Mas a mais sensível diferença estava na cor de seus cabelos, que haviam trocado a claridade de outrora por um tom mais escuro, barroco. Passara a ser morena, apesar de ainda manter as suas raízes loiras...

1 Comments:

  • Escreve mais meu amor, assim o dia fica mais leve, fica mais lúdico e me faz viajar para lugares onde o ar é geladinho e cheira a eucaliptos.
    Beijos mil,
    LL

    By Anonymous Anonymous, At 11:50 AM  

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