ironia, ainda que tardia

Monday, June 13, 2005

Sodomia, o conto

Daniel Soleil Noir

O sexo anal foi inventado pelos senhores de escravos. Era com essa frase que Otávio gostava de começar seus discursos nas noites de sexta-feira. É claro que, para proferir essas palavras, ele precisava tomar um gole de caipirinha ou algo que o valha. A bebida era responsável por inflamar ainda mais o que dizia. E ai de quem ousasse discordar de seus pensamentos... O cara que disse, por exemplo, que o sexo anal fora inventado na Europa, pelos senhores feudais, talvez sequer esteja vivo atualmente para contar a mesma história. Aquele que sugeriu a Grécia Antiga como berço da sodomia acabou preso numa delegacia por causa de uma denúncia do próprio Otávio. No entanto, ele se mostrava afável diante dos que duvidavam de sua sanidade mental. Argumentava, após duas ou três doses de uísque falsificado, que a loucura é o item de maior inclusão social da face da Terra. Ultrapassando, com larga vantagem, a televisão, o cigarro, o sexo, a mentira e o queijo minas. No fundo, acho que ele tinha razão. Embora eu deva confessar ao presente leitor que meus hábitos também não são nada ortodoxos; um pouco insanos, para se dizer o mínimo.

Apesar de alguns efeitos colaterais, as tais teorias nunca passaram de proposições inofensivas. Pelo menos até aquela enluarada noite de maio.

Ivete andava célere e sinuosa por entre as mesas na calçada. Enquanto caminhava, Otávio a seguia com os olhos bem atentos. Ela então encontrou uma amiga, a qual levantou-se para cumprimentá-la com um beijo no rosto. Que bunda! - foi a exclamação que veio do protagonista desta história. Nada de anormal para quem sempre se definiu como admirador dos belos e fartos glúteos femininos. Só que houve um momento em que as coisas começaram a se complicar. Eu quero essa bunda pra mim; disse ele com um olhar ávido e quase demoníaco. Quero essa bunda; repetiu em seguida. Quero, porque quero! Lembro-me que chegamos a encará-lo com uma certa surpresa, ainda que fosse uma surpresa complacente. Mas de repente ele se ergueu da cadeira em que estava sentado e se dirigiu à Ivete, a uns três metros de distância. A partir daí, o que testemunhamos foi pura mímica. Como não entendíamos o que era dito pelos dois personagens, resolvemos fazer troça da insólita situação. Será que Otávio propunha uma rapidinha à nobre dama, no banco de trás de seu Fusca 1300? Ou o nosso amigo estaria próximo de tomar um tabefe no meio da fuça? As elucubrações caíram por terra quando ele pareceu dar um cartão de visitas para Ivete, despedindo-se da jovem com um sorriso cordial nos lábios.

Na madrugada de sábado, nós nos encontramos novamente com Otávio. Ao abrir a boca, percebemos logo que ele mudava o viés de seu costumeiro discurso. Nada de pormenores históricos acerca da exata data de nascimento do sexo anal. O cara passou duas horas ininterruptas discorrendo sobre o derrière de Ivete. Era como se a moça, de uns vinte anos, pudesse ser resumida apenas por sua própria bunda. E veja que se tratava de um belo exemplar de mulher. Seus cabelos ruivos e cacheados vinham longos à metade de suas costas. O nariz afilado e o rosto fino lhe conferiam um ar de eterna adolescente, de eterna Lolita. Isso sem contar as insinuantes camisetas regatas que vestia e as justas calças que lhe contornavam as pernas mais que perfeitas. Ivete ainda estava na faculdade, mas faltavam somente alguns meses para a conclusão do curso de Relações Públicas. A moça tinha também um sorriso fácil e uma simpatia inigualável. É bem possível que seja bem-sucedida na profissão que escolhera ao final do colegial. Como se não bastasse, ela tocava piano e fazia curso de violino desde a tenra infância. Por essas e outras razões, repito: era uma injustiça resumi-la ao bumbum, mas Otávio insistia em fazê-lo, como é possível observar no próximo parágrafo.

Nunca houve no mundo uma bunda igual a de Ivete. Ela é a própria perfeição. Hoje, no início da tarde, tive a oportunidade de sentir sua textura e maciez. Com as mãos, com a boca, com os dentes, com o pau enrijecido. Juro que fiquei perto de um infarto por causa daquilo. Afinal, demorei cinqüenta e dois anos para contemplar uma coisa assim. Mas, como diz aquele antigo ditado, estou velho, não estou morto. Os glúteos de Ivete viajam pelo universo anos-luz à frente dos das outras moças. Nesta cidade mesmo, há mulheres que se assemelham a verdadeiros paquidermes no que se refere ao tamanho da bunda e das coxas. Essas não passam de meras reprodutoras, prontas para se transformarem em vítimas naturais do chauvinismo, mal que rege as relações humanas desde a criação. E por tocar num tema religioso, desconfio que o traseiro daquela menina seja um sinal de Deus. Um sinal como os Dez Mandamentos, entendem? Só que agora sem Charlton Heston no papel principal. É como se Alguém lá em cima nos revelasse que a sodomia enfim não figura mais no rol dos pecados cristãos. Tomara que esse sinal se espalhe por todas as crenças, a fim de que o homo sapiens descubra uma nova porta para a felicidade e para o prazer carnal. Quero me casar com ela. Quero acordar e saber que aquela jóia está ao meu lado, não junto de um desses fulanos que subestimariam o seu valor inestimável.

Infelizmente, o casamento deles nunca aconteceu. Mesmo com esse revés significativo, Otávio obteve a dádiva de contar com Ivete nas filmagens de seu último filme. Não existia roteiro. Não existiam atores. Nem diálogos. Somente a bunda de sua musa maior tomando a extensão do quadro. Nas mais variadas posições. Nos mais diversos movimentos. Nos figurinos mais insólitos - embora ela apareça nua em oitenta por cento da película. Otávio simplesmente plagiou a primeira cena de Brigitte Bardot naquele filme de sessenta e três, cujo nome não consigo lembrar. Depois, veio a seqüência em que Ivete é imortalizada caminhando desnuda na beira da praia, por uns trinta minutos, enquanto anoitece e vai sobrando apenas a sua silhueta brilhando contra a luz da lua cheia. Pronto, o trabalho recebeu o sugestivo título de Derrière. Há notícias de que os pais da atriz recém-convertida não aprovaram sua polêmica estréia nas telas de cinema. Por que só aparece a sua bunda, minha querida? - perguntou a mãe. O pai, por sua vez, ficou bastante inconformado e, num arroubo moralista do qual os pais são capazes, passou a arrancar, estraçalhar e pisar todos os cartazes do filme que encontrava. Nem os prêmios em Cannes, Berlim e Veneza colocaram um ponto final na rabugice do coroa.

Ao mesmo tempo em que o sucesso da fita se espalhava pelo exterior, aumentavam as intimidades entre Ivete e Otávio - perdoe-me aqui o eufemismo de mau gosto. Eles trepavam a qualquer hora, em qualquer lugar. Era a sodomia passando da teoria à prática. Chegava a hora de destroçar os tabus de séculos e séculos. Ela podia, inclusive, ter a petulância de dizer que o sexo anal fora inventado na Pré-História, bem antes da roda, que ele nunca discordaria. Estava embevecido com o formato daquele traseiro.

Porém, toda felicidade tem seu fim. Se não terminasse, não seria felicidade, seria rotina. No aniversário de namoro dos dois, Ivete tascou um beijo na boca de Otávio. Beijo apaixonado. O primeiro beijo. Mas após o inesperado ósculo, ambos decidiram que jamais se veriam de novo. Sentiram-se inexplicavelmente envergonhados e desistiram do casório que planejavam para dezembro.

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