ironia, ainda que tardia

Tuesday, June 28, 2005

Rumo ao horizonte

Daniel Soleil Noir

Rita há muito tempo queria saber. Mas Jorge, por sua vez, fazia questão de não contar. Só dizia que tinha um segredo e que não poderia falar mais nada sempre que ela perguntava, mas prometia em seguida que um dia contaria. Contrariada, só depois de muito tempo, e de muita insistência, ela aceitava o argumento, e bastava um beijinho de fim de tarde para que esquecessem o assunto e passassem a dar mais atenção a assuntos um pouco mais imediatos. Coisas de namorados.

Jorge tinha uns quinze anos e se apaixonara por Rita ainda na época da sétima série. Mas, naquele tempo, ela sequer dava bola pra ele. Preferia os meninos mais velhos, aqueles que já estavam para sair do colégio. Um dia então correu um boato na cidade de que Jorge tinha um segredo guardado a sete chaves por sua família e que por nada nesse mundo ela permitiria que ele caísse nos ouvidos da gente do lugar. A notícia despertou o interesse de Rita, que logo consentiu em ser namorada de Jorge.

A partir daí, a família da menina, sabendo do namoro, cogitou que o tal segredo fosse uma doença incurável. E mesmo que a curiosidade de todo mundo a respeito continuasse muito grande, talvez fosse melhor se afastar para evitar o contágio, diziam. Rita fez cara de choro na mesa de jantar, enquanto o relógio da sala badalava às costas do avô, justamente de quem partira a sentença para que ambos colocassem fim ao tal namoro adolescente.

No dia seguinte, ao pé de uma árvore no sítio em que o Jorge morava, Rita contou a desconfiança da família em relação ao seu segredo, cuja repercussão já começava a alcançar também os lugarejos vizinhos. Jorge ouviu e não esboçou qualquer reação, como se estivesse acostumado a essa espécie de boato. Rita, porém, não estava acostumada e lançou, numa frase ríspida, que só continuaria o namoro se ele lhe contasse que segredo era esse. Jorge quis saber se ela também desconfiava de uma possível enfermidade. Ela olhou nos seus olhos com a vista marejada e, com raiva na voz, perguntou: e por que não? Ele sentiu um arrepio e levantou-se da raiz onde estava sentado.

Rita já começava a limpar as lágrimas que desciam de seus olhos, motivadas pelo movimento súbito que seu amor fizera para se erguer. Contudo, não se levantou. Preferiu encará-lo lá embaixo, como se demonstrasse uma dose de arrependimento por cobrá-lo de maneira tão acintosa. Jorge limpou a parte de trás da calça e ficou de costas para ela, que também não disse mais uma só palavra. Ao se voltar para a namorada, deu um sorriso tímido e falou que enfim lhe contaria.

Após se comover com o sorriso do rapaz, Rita se aprumou sobre a raiz para ouvi-lo com atenção. E se surpreendeu quando ele escapou de seu campo de visão e começou a voar em torno da árvore, a voar um pouco mais para o alto, e a fingir, em seguida, sumir de encontro à linha do horizonte. Jorge tinha asas nas costas que pareciam de algodão. Ele tirou a camiseta que vestia e as libertou para alçar seu vôo secreto aos olhos dos demais citadinos. O que Rita também via era o rosto do querido iluminado pela tarde de sol e a cor das asas que se confundiam com as nuvens no céu.

Surpresa, como não poderia deixar de ser, Rita se levantou e deu alguns passos, o suficiente para sair da sombra da copa da árvore. Com isso, Jorge logo voltou a se aproximar, até pousar de pé diante dela, com as asas ainda batendo devagar. Com os pés em terra firme, ele tomou o queixo dela entre seus dedos e perguntou o que havia achado da novidade. Rita não disse nada, mesmo que os lábios ainda estivessem entreabertos, assustados com o que nunca imaginara antes.

Jorge fez menção de beijá-la, mas Rita se esquivou num primeiro instante. Queria ter certeza a respeito do fenômeno. Por essa razão, perguntou se ele era um anjo. Jorge riu, no entanto. Sem graça, preferiu não responder. Já a curiosidade ressaltava o azul dos olhos de Rita, que olhava para ele com uma enorme indagação inscrita na retina. Jorge, contudo, continuava com a mesma feição e não respondeu se era ou não um anjo. Mesmo diante da insistência da menina.

Só depois Rita aceitou beijá-lo e, voltando a rir, cobrou-lhe novamente uma resposta. Sem sucesso, ensaiou uma nova pergunta. Seria ele filho de pássaro? Na cabeça dela, a pergunta até que tinha coerência, embora conhecesse os pais de Jorge e soubesse que nenhum dos dois tinha qualquer coisa de ave. O pai do namorado não passava de um caseiro pobre que tomava conta da propriedade do patrão, empresário da cidade grande e que costumava visitar o sítio apenas aos finais de semana. Já a mãe passava as tardes fazendo costura para fora, preparando as encomendas da vizinhança.

Diante de uma curiosidade que não diminuía, enquanto ela já começava a morder com força os próprios lábios, Jorge decidiu negar a possibilidade de que fosse um anjo ou um pássaro. O que ele era então? Ela não se contentava com meias verdades e deixava cada vez mais claro o que queria saber. E, de preferência, que fosse a verdade completa.

Também sem resultado, Rita passou a contar, sem querer, os planos que tinha para a novidade. Disse que a contaria para o avô, o mesmo que proibira os dois de se reencontrarem. E para a mulher da quitanda, que também não se cansava de recriminar a companhia do menino e que ficaria encarregada de espalhar a história aos quatro ventos. Só que Jorge fez questão de lhe interromper de repente e pediu que ela mantivesse aquele segredo somente entre os dois, que não o contasse a ninguém.

Mais uma vez ela quis saber o porquê. Jorge respondeu que não queria que o resto da cidade o tratasse como uma aberração a partir dali, e que era mais prudente que tudo continuasse como especulação, tema das fofocas de quem, segundo ele, não tinha nada o que fazer da vida. E Rita acatou a ordem, selando o acordo ao beijar por duas vezes os dedos cruzados de uma das mãos.

Rita e Jorge passaram a se ver com mais freqüência depois que ele lhe contou o segredo. Era evidente o fascínio que passava a exercer sobre ela com as tais asas dissimuladas atrás das costas, que ao mínimo comando se abriam e o faziam voar em torno de onde estivesse. Encontravam-se à tarde, noutros dias se viam mais à noite, e até o próprio envolvimento passava a ficar mais próximo à medida que o tempo passava e ele ia pairando sobre o coração apaixonado de Rita.

Na família da menina, todos passaram a questionar o que causara essa mudança de comportamento. A mãe resolveu apostar na hipótese de que ela soubesse algo sobre o famigerado segredo. Quando chegou a hora do jantar, todos à mesa resolveram perguntar, numa confusão de vozes, a causa dessa mudança, e não precisaram de rodeios para que falassem abertamente do segredo de Jorge. Rita temeu que conseguissem lhe arrancar a verdade, pelo menos até o momento em que resolveu contar uma mentira para que mudassem de assunto e a deixassem em paz.

Ela confirmou a história da doença, mas negou que fosse contagiosa. Disse que Jorge poderia morrer a qualquer momento, assim como poderia chegar sem percalços à velhice. Essa foi a história que cada membro de sua família passou a fazer questão de espalhar cidade a fora. E Rita passou a não sofrer mais com a cobrança dos pais, dos irmãos, dos tios e dos avós.

Numa noite em que se encontraram, Rita contou a Jorge sobre a mentira. Mas ele a recriminou por causa disso. Disse que ela deveria ter permanecido sem dizer nada, fingindo que simplesmente não sabia. Ela então fechou o semblante, mas logo resolveu virar o jogo e reclamou que, nesse tempo todo em que sabia qual era o segredo, ele nunca havia lhe oferecido a chance de voar também. Jorge respondeu que não poderia lhe dar a carona sem que antes soubesse para onde. Não tinha certeza sobre quanto tempo poderia agüentar com ela sobre suas costas, deitada entre as duas asas.

Rita disse que queria alcançar com ele a linha do horizonte e voltar para onde estavam, sentados sobre o gramado à beira de um barranco. Ela chegou a tentá-lo com a paisagem que se via lá de cima e com a excelente plataforma de decolagem que havia arranjado sem querer.

Jorge decidiu assumir o risco e a colocou sobre suas costas. Partiram e seguiram na direção do horizonte. E gozaram o prazer da viagem mesmo que ela fosse uma viagem sem fim.

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