ironia, ainda que tardia

Wednesday, June 01, 2005

Poesia desnuda

Daniel Soleil Noir

Não era inverno e o frio era incomum naquela época do ano. Entrava um vento encanado pela fresta da janela do quarto vazio e desolado. Aliás, as únicas coisas que marcavam presença naquele cômodo no início da noite eram a friagem que vinha de fora e aquele ar de desolação. Os lençóis amarrotados sobre a cama e os travesseiros jogados no chão apenas ressaltavam o clima que chegara na noite anterior e que não fazia qualquer menção de ir embora. Pelo menos até a chegada de João Pedro, que abriu a porta e pendurou sua gravata em volta da maçaneta.

Ele preferiu não acender a luz, no entanto. Contentou-se com a iluminação que provinha dos postes na rua, da lua crescente, dos carros que o tempo todo saíam ou entravam nas garagens dos prédios vizinhos. E mesmo que João Pedro não tivesse noção da hora, eram apenas nove da noite. Nem todo mundo havia chegado em suas respectivas casas. Assim como Lígia ainda não havia chegado ao apartamento. Talvez fosse o trânsito, imaginou, sabendo que se enganava pensando daquele modo. A discussão da noite anterior talvez fizesse com que ela jamais voltasse.

A barba de João havia se crispado com o vento, porém ele preferiu não cerrar totalmente a janela. Até pensou em tal possibilidade, mas nem cogitou levantar-se do colchão desarrumado, sobre o qual se sentara para descalçar os sapatos. Permaneceu ali, fumando um cigarro e batendo as cinzas sobre uma das meias que também tirara e que certamente nunca mais voltaria a usar. O maxilar chegava a oscilar com o frio, só que ele nem se importava; continuava quieto, em compasso de espera, aumentando a tortura ao condenar-se a não consultar relógio algum.

Lígia chegou justamente em um momento em que ele estava distraído, ou mesmo imerso no próprio sono, o que já seria suficiente para ensejar tamanha distração. Entrou calada e continuou dessa maneira enquanto ele se recompunha, passando uma das mãos sobre a roupa e a outra sobre o rosto amassado. João Pedro, por sua vez, também se manteve calado. E tentou buscar os olhos dela, mesmo que ao mesmo tempo colocasse uma boa dose de desdém nesse seu olhar.

Tanto silêncio o motivou a fazer alguma coisa. A se aprumar impaciente, a se levantar em seguida. A pegar o braço dela quando Lígia lhe deu as costas, evitando que os olhos de ambos se cruzassem a princípio. Tire as mãos de mim, ela disse. E dando-se conta que havia sido brusco demais naquele gesto, João recuou e continuou observando-a a uma relativa distância. Três palmos já era um espaço seguro tendo em vista o próprio tamanho do quarto em que estavam.

Lígia então ensaiou dizer mais alguma coisa. E antes que passasse da segunda frase, ele ordenou que ela se calasse. E desta vez João não se arrependeu do que acabara de fazer. Surpresa, ela esboçou uma reação mais dura, tendo como resposta a mesma hostilidade estampada na feição dele contraída. Agora sim estavam enfim unidos em uma reação comum, unidos em um sentimento que os igualava naquele instante, ainda que fosse algo diferente das juras de amor de um passado remoto, que pareciam ter deixado para trás - e para sempre - na noite passada.

Você sempre tem razão em tudo o que faz. Em tudo o que diz. É um poço de racionalidade. Por que é errado tudo o que faço, ou tudo o que digo? Não sei, mas pelo menos essa é a impressão que você me dá. A impressão de que todos os meus atos e que todas as minhas palavras são totalmente instintivos e que, por isso, não lhe servem para nada. Por que os meus instintos valem menos que a sua pretensa razão? É possível que nem você consiga articular bem essa idéia. Que demore tanto para responder que descubra no caminho que essa sua vida nem vale muito a pena.

Ela ficou contrariada com o súbito discurso do cônjuge. Mas pela primeira vez recuou o olhar, não quis responder ou retrucar as acusações tão prontamente. E ao se perceber acuada, começou a tatear a parede do quarto, querendo achar o interruptor de luz no intuito de acendê-la. Pensou que assim conseguiria se recuperar da momentânea condição de inferioridade diante dos argumentos de João. Ele, contudo, agarrou novamente o braço dela, desta vez com plena convicção do próprio ato, com a plena convicção de que não poderia permitir que ela virasse o jogo a seu favor.

Praticamente desistindo da batalha, Lígia tascou um beijo na boca de João, boca que ainda pairava no ar, entreaberta e contraída pela raiva. Ela mantinha de muito tempo - havia cerca de uma década - a crença adolescente e imatura de que contra um beijo jamais existiria argumento. Era a sua maneira de flertar com o subjetivo, já que havia acabado de devotar sua vida a tudo o que fosse certeza, a tudo que fosse científico, racional, minucioso, filosófico e objetivo.

Mesmo assim, João continuou. E sem dizer palavra, lhe propôs um jogo de verdade. Largou o braço dela e passou a desabotoar a camisa com que estava vestido. Depois, tirou a calça. Mas a cada a peça de roupa que arrancava do corpo, até com certa violência, tomava o cuidado de dar um passo para trás em relação a Lígia, de modo a aumentar a distância entre os dois. Não desejava tomar o corpo dela logo que terminasse de se despir, como já fizera antes naquele mesmo quarto. Queria saber apenas qual dos dois chegaria a admitir primeiro toda a sua fragilidade diante do outro.

Se seria ele... ou se seria ela...

E pediu que ela fizesse o mesmo. Lígia não chegou a compreender até onde João queria chegar. Até onde queria levá-la. Mas passou a tirar também a própria roupa. A sentir na pele a friagem que insistia em entrar pela janela. Abdicou da camisa que vestia, da calça, do sutiã que jogou com cuidado sobre a cama. Os pêlos de seu corpo se crisparam de repente e ela cruzou os braços sobre os seios, em uma tentativa frustrada de se proteger do frio. Viu, porém, que fazer isso era burlar uma das regras do jogo e deixou com que os braços lhe caíssem em torno da silhueta desnuda.

A única fonte de calor naquele ambiente era o rosto de João, de um avermelhado que contrastava com sua barba preta e mal aparada. O pênis, entretanto, apesar de exposto, ainda se mantinha derreado. Não fizera menção alguma de se dilatar, de querer alcançar o ventre de Lígia, que ainda se mostrava tão próximo e desprotegido. Permanecia quieto, murcho, embora essa discrição não parecesse advir do mesmo homem que sempre fizera questão de ostentá-lo como a melhor parte de si, a única que talvez valhesse a pena ser usada quando fugia das coisas do dia a dia.

O corpo de Lígia também aparentava uma fragilidade excessiva. Não porque suas pernas tremessem de forma quase imperceptível. Ou porque os mamilos intumecidos dessem uma idéia do frio que sentia. O fato era que pela primeira vez em sua vida ela não se deparava com um João ávido por sentir com os lábios a temperatura de sua pele, pronto para lhe tomar a cona de assalto, mesmo que ela se esquivasse no início, e fosse cedendo aos poucos, perdendo espaço mais a mais, e perdendo um pouco aquele jogo cotidiano no qual haviam se envolvido desde antes do noivado.

Só que o jogo naquela noite era outro. Incluía vê-lo fazendo uso daquela nova espécie de desprezo, sem esboçar nenhuma reação de cunho sexual ou qualquer demonstração de afeto. João apresentava apenas um olhar que a enfrentava, que ironizava a própria presença dela e o fato de que Lígia não se sentia nada confortável quando obrigada a se despir de tudo e a escancarar a própria essência diante de João. Ele, por outro lado, mesmo mantendo-se calado, insistia que era um homem feito somente dessa essência e que, por esse motivo, contava com uma maior facilidade em se despir das máscaras que a vida lá fora impunha a ambos, sem excessão.

E assumindo a derrota, Lígia aproveitou um momento de distração para abraçá-lo pelas costas, colando-se à carne branca e crua de João. E para evitar que ele a rechaçasse, ela cravou as unhas no peito dele, não a ponto de lhe tirar sangue, mas com a intenção de lhe provocar uma reação mais intempestiva, que os tirasse daquele transe que já se estendia madrugada a dentro. E ele permitiu-se beijá-la, pois agora sim ela acabara de se entregar aos seus instintos mais recônditos.

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