ironia, ainda que tardia

Friday, June 17, 2005

Aos olhos azuis de Mariana

Daniel Soleil Noir

O azul escuro do manto de Nossa Senhora naquela igreja acanhada de interior nem se comparava à cor dos olhos de Mariana. Eles estavam gravados na minha retina, pois faziam parte da minha vida desde a nossa primeira comunhão. E de repente me peguei atônito ao não tirar a vista daquele azul claro, sutil e cristalino de sua íris. O ambiente pouco iluminado naquela tarde de sexta-feira dilatava um pouco sua pupila fazendo-a parecer um dia de maré baixa. E a miopia era a única imperfeição de uma visão cujos óculos discretos não conseguiam atrapalhar a minuciosa fruição que eu prestava.

- Amém! – o povaréu respondeu em coro à seqüência da missa.

Permaneci calado. Não havia razão para prestar atenção num rito que eu sabia de cor desde os tempos de moleque, quando vovó nos levantava da cama com a xícara de chá tremendo em suas mãos quentes e enrugadas. Preferi continuar olhando para Mariana, desta vez me atendo aos seus cabelos lisos, de um loiro escuro que partia quase para o castanho claro. Eles desciam pelas espáduas e pareciam o hábito de uma santa, subitamente beatificada enquanto eu continuava bestificado, sem perder a atenção em instante algum. Numa ousadia da imaginação, pura fantasia, dava para sentir o cheiro bom que impregnava cada um daqueles delicados fios.

- Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, – enfim sussurrei com os outros – mas dizei uma palavra e serei salvo.

Mariana vestia um pulôver preto que trancava seu pescoço e contrastava com sua pele alva, rasgada somente pelo sorriso discreto que acentuava a beleza do rosto macio. Vez por outra, demonstrava certa impaciência, cansada da lentidão do padre que já levava a missa para a terceira meia hora. Ao genuflexório, apoiava o cotovelo esquerdo sobre o encosto do banco à frente, deitando a cabeça na palma da mão, formando um ângulo de cansaço em que a bissetriz era o bocejo intermitente. E um desespero me abatia no momento em que seu olhar desviava da minha rota.

Meu instante de hipnose acabou com o culto e eu me senti preso, sentado no banco ao lado de Mariana, a cerca de dois metros à esquerda. Levantou-se calma e eu também me ergui, ainda que trêmulo. Só que ela caminhava com mais facilidade, pois fazia o mesmo caminho dos outros. Quis segui-la e me incomodaria ser flagrado - confessando o mínimo - numa atitude quase desesperada para não perdê-la. Procurei manter uma distância segura, na qual pudesse prosseguir em minha contemplação. Vi sua chegada ao esquife diante do altar, seu olhar tenro deitando-se sobre o rosto pálido do cadáver e a mão caindo leve nos vincos daquela derme fria.

Eu havia saído de meu apartamento em São Paulo convocado por um recado gravado na secretária eletrônica. Aproveitando minha folga de cinco dias e o fato de que não existia programa melhor na agenda, resolvi comprar a passagem de ônibus para viajar rumo ao interior. Ao menos papai cozinharia seu tradicional arroz de carreteiro, o qual parecia me chamar pelo odor a quilômetros de distância. O problema foi que enchi a cara na noite do embarque e viajei numa ressaca violenta, percebida por meu irmão mais velho ao me buscar na rodoviária. Como a madrugada não foi suficiente, acordei à uma hora da tarde com a casa vazia e com um bilhete me intimando pregado na porta da geladeira.

Era justo que eu estivesse no velório e na missa de corpo presente de Dona Cecília, a tia mais nova do prefeito. Viúva muito cedo, sempre foi amiga da família. Ensinou-me a ler e a escrever aos cinco anos, antes de todos os meus colegas da escolinha primária. Tomava-me o ponto e a caligrafia após acordar no final de cada tarde, servindo uma torrada com margarina e um copo de leite puro fervido. Meu irmão achava monótona aquela vida de estudar à mesa, na cozinha quente da nossa casa. Preferia sair para empinar papagaio em cima da laje da casa do zelador da prefeitura. Nunca imaginei naquela época que a tão doce senhora emprestasse seu esforço e carinho também para uma tímida menina da minha idade que morava logo ali na esquina.

Roubei meu primeiro botão de rosa vermelha por causa de Mariana. Tinha oito anos e invadi o quintal do sobrado da mal-humorada Dona Neusa. Dei o presente e arcaria com as conseqüências sozinho: uma surra de cinto da tal mulher, se Dona Cecília não interviesse em meu favor. Três anos mais tarde, aprenderia com ela no catecismo que Deus não gostava das pessoas que pegavam as coisas dos outros sem permissão. E eu não desviava a atenção do quadro negro, muito menos dos slides projetados na parede esverdeada da sala de aula. Mariana fazia parte da minha turma, junto a outras quatro crianças, e sentava-se ao meu lado sempre que a outra menina do curso faltava.

Ganhei um violão aos 15 anos e Mariana tornou-se automaticamente minha primeira aluna. Jantávamos com seus pais e sua irmã mais moça e íamos para a varanda no intuito de não atrapalharmos os que gostavam de assistir a novela das oito. Poderíamos até ter começado a namorar ali. Mas eu cultivara um respeito grande por sua família e preferi me preservar. Acredito que ela também possuísse uma razão para não ficarmos juntos, embora fôssemos muito ligados. Talvez encarássemos nossa relação como um convívio entre dois irmãos.

Logo que o cortejo começou a seguir para a necrópole, debaixo do sol forte daquela tarde, bastou-me apenas esperar o momento certo para que me aproximasse dela fingindo naturalidade. Mariana notou minha presença e me deu um sorriso educado, condizente com a ocasião. Continuei a seu lado, como que prestes a lhe contar um segredo, mas sem coragem de lhe dizer qualquer coisa. Em alguns momentos, porém, eu notava um certo desconcerto da parte dela. E atribuía isso à hipótese de que talvez estivesse sendo inconveniente por essa minha proximidade. E tal possibilidade, por sinal, pouco me importava, pois eu ainda me dava o direito de fazer parte da vida dela, mesmo que o destino - naquela minha ainda ingênua concepção - tivesse nos separado no plano físico.

Pouco antes de chegarmos, todavia, Mariana me surpreendeu ao tocar meu braço. E me assustou ao apertá-lo com força, tirando-nos da fila com cuidado para que o restante das pessoas não percebesse aquela nossa fuga. Ousei pensar em perguntar a razão daquilo, mas um sorriso sem graça tomou em meus lábios o lugar de qualquer indagação. Assim, apenas me entreguei ao novo caminho que passávamos a seguir juntos, deixando a estreita estrada forrada de pedras e adentrando um cafezal ali próximo, já perto da época da colheita.

Após uns dez minutos de uma breve andança que parecia sem fim, paramos logo à frente de um cafezeiro bonito e Mariana me lançou outro sorriso: uma nota mais baixa que o anterior, um tanto mais acanhado e menos seguro também. Hesitei um instante, porém pousei a mão sobre um de seus ombros para deixá-la mais segura. Eu havia mudado bastante depois daquele tempo todo. Era natural que, apesar da curiosidade recíproca, a timidez viesse a intermediar uma primeira conversa. E passado esse primeiro momento, enfim perguntei a razão para aquela nossa saída repentina.

Notei que os olhos de Mariana já não estavam como na igreja. A luz do sol fizera subir de novo a maré de sua íris. Mas outro motivo fazia com que sua vista transbordasse algumas lágrimas. E confesso que aquilo foi capaz de me desconcertar. Eu simplesmente não sabia mais que tipo de reação deveria pelo menos esboçar. Imaginei que um gesto de carinho poderia ser rechaçado se não se adequasse às razões dela para me levar até ali. Optei pela espera e esperei que ela enxugasse com as mãos trêmulas o seu rosto molhado. Lembrei então de quando, no passado, eu sorvia com a boca o choro que escorria em sua pele antes de cair no chão da varanda.

Recomposta do choro, ela interrompeu com um pedido aquela minha nova seqüência de recordações. Disse que precisava me contar algo e que eu me preparasse para ouvir o que ela tinha a me dizer daí em diante. Enquanto isso, durante os segundos que precederam sua frase seguinte, eu me perguntei temeroso o que iria escutar.

Contou-me que, uns cinco anos antes, tiveramos tido uma filha e que nela havia colocado o nome de Clarissa. Mas disso eu não me lembrava. Jamais me passara pela cabeça uma coisa como aquela. E é de sexo que estou falando. Porém, Mariana me disse aquilo com tanta convicção, que não pude deixar de acreditar. E resignei-me a indagar somente como tudo havia acontecido. Sua resposta foi a surpresa diante do que julgava ser uma falta de memória imperdoável. Só que por mais que eu tentasse, não conseguiria lembrar.

Veio então a vez dela de fazer as perguntas. Perguntou se eu não lembrava do nosso último encontro em nossa cidade natal, se não lembrava do dia em que corremos por entre aqueles mesmos arbustos carregados no cafezal, até que nos jogássemos nus por sobre a terra e déssemos início ao projeto de nossa filha. Contudo, suas palavras tinham mais vivacidade do que qualquer imagem que pudesse passar pela minha cabeça, já que simplesmente eu não me lembrava de nada. Poderia até parecer crueldade da minha parte, mas eu não podia fazer nada para contrariar a verdade.

Surgiu-me, enfim, uma dúvida a respeito do fato de Mariana estar me fazendo tal revelação depois de tanto tempo. Não que aquilo justificasse a minha suposta falta de memória. Tratava-se de um modo de não levar a culpa sozinho por termos negligenciado tanto os rumos do nosso destino. E ela prontamente argumentou com palavras das quais eu já não me lembro mais. Deu as suas razões e a única coisa que eu sei é que consenti em concordar com ela, envergonhado sem saber o porquê.

E além do mais, eu não guardava recordação alguma de já tê-la visto nua. De ter profanado algum dia a imagem que guardei e que fui construindo ao longo da adolescência. O melhor eu já havia perdido. Se não houvera perdido de fato, pelo menos se apagou da minha memória no mesmo instante em que aconteceu. E desapareceu do mesmo modo que o amor que talvez tenhamos empregado naquele ato em si. Um amor bem diferente, aliás, do que guardávamos em um passado bem mais remoto. E diferente daquele que eu sentiria por minha filha logo que a conhecesse.

Restou-me querer saber como era essa nossa filha. Com quem ela se parecia.

Mariana disse que Clarissa era a minha cara e que seria mais parecida se os seus olhos não fossem azuis como os olhos da mãe. E percebi, em suma, que por mais que eu não me lembrasse, Mariana e eu não éramos mais um antigo álbum de retratos.

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