ironia, ainda que tardia

Wednesday, March 09, 2005

Um Sonho

Daniel Soleil Noir

Ela colocou o pé direito descalço sobre o porta-luva do carro. As unhas estavam bem feitas, embora não estivessem pintadas. Calçava trinta e cinco, mas havia esquecido os sapatos à margem do riacho, de onde saíramos não havia mais que trinta minutos. Cheguei a me oferecer para voltarmos e pegá-los de novo. Temia que se machucasse ou que se sujasse quando pisasse o cimento da calçada diante de sua casa. Tinha os pés delicados demais, frágeis demais, assim como seu próprio corpo, ainda quase infantil. Mas ela me disse que não precisaria voltar a pisar no chão. Imaginei que teria que carregá-la para dentro. Ela me respondeu, porém, que era porque, na verdade, não iria simplesmente deixar o carro naquele instante ou em momento algum.

A tarde estava quase terminando. Pela hora, já teria terminado se não fosse o horário de verão. E havia um detalhe: era domingo. Podia-se notar isso pela ausência de outros carros estacionados em toda a extensão da rua e até na tristeza estampada nas folhas verdes na copa das árvores. Respondi que não poderia ficar mais ali. Precisava voltar para a minha própria casa, passar as camisas para o trabalho, as calças, preparar as meias, o cinto, as gravatas. Ela argumentou que tudo isso era desimportante, que queria permanecer comigo, mesmo durante a semana, o que eu mesmo via como praticamente impossível. Mesmo assim, era o que ela queria, o que exigia de mim. Prometi então sonhar com ela, todos os dias, até que o próximo domingo chegasse.

Ela me beijou o rosto com a inocência de uma criança e me indagou qual a garantia que eu possuía de que não era aquele exato instante um sonho propriamente dito. E fiquei sem palavras, sem coragem para abrir a boca, mesmo que uma resposta parecesse se insinuar na ponta de minha língua.

- O que é que você costuma fazer quando está sonhando?

Ela me perguntou isso com um sorriso no canto da boca, iluminada por uma luz amarelada de outros fins de tarde como aquele. Tentei fugir da resposta beijando-lhe os lábios, calando-a por segundos ínfimos, mas ela me evitou com a palma da mão esquerda contra o meu peito. E com um movimento das sobrancelhas para cima e a testa levemente franzida, voltou a me cobrar uma resposta para o questionamento que me fizera.

- Eu vôo; costumo voar enquanto estou sonhando. E você?

Assim como fiz a princípio, ela também não me respondeu. Ficou quieta, ainda que não desistisse do sorriso. E vendo as nuvens brancas se movimentarem devagar através do pára-brisa do carro, imaginei-me voando como se voasse de verdade. Como se realmente me sentisse mais leve que o ar e pudesse alcançar o céu, sozinho, sem auxílio ou maiores dificuldades. Eu sabia, contudo, que esse tipo de sonho é muito comum entre a maioria das pessoas. Quando se está dormindo, as plantas dos pés não tocam em nada. Não estamos em pé como durante o dia. As pernas também se mantêm quase sempre esticadas, em linha horizontal, como o próprio resto do corpo. E relaxados, temos a sensação de estarmos voando, surpreendendo os demais que nos observam e que não conseguem fazer o mesmo em nossos respectivos sonhos.

Insisti para que me revelasse, enfim, com o que costumava sonhar. Mas ela continuou sem dizer nada. E, por alguns instantes, preferi que ela saísse do carro e que fosse logo para a sua casa. E quando eu voltasse para a minha, poderia esquecer aquele assunto sem propósito. Por outro lado, havia seu rosto que eu queria beijar antes de me despedir de novo. E para tanto, teria que abreviar a tal conversa de modo que ela não se ofendesse. Nem que acreditasse que eu a achava inoportuna. Mas bastou que eu fizesse de novo menção de abrir a boca, para que ela me lançasse outra pergunta.

- Você sabe qual foi seu último sonho?

Hesitei em dar algum palpite. Foi a minha vez de sorrir, ainda que um sorriso tosco, sem jeito, que temia encará-la de frente, em um desconcerto sem explicação. Ela então decidiu contar o dela.

- Sonhei que estávamos deitados sobre a relva durante a tarde inteira, ainda úmida pela garoa que caíra no período da manhã. Você chegou a observar que apreciava o odor que vinha da grama. Sem camisa, deitou-se de lado e ficou me olhando de um jeito esquisito, que achei até engraçado. Fingi que observava a revoada dos pássaros que saíram cantando dos galhos. Mas você não desistiu do que desejava com afinco e roubou-me um beijo. Não que eu não quisesse beijá-lo, muito pelo contrário. Só queria me fazer de difícil, o que é quase impossível com você tão próximo. O vento soprava a sua franja para cima enquanto fazia com que meus cabelos rebatessem contra meu rosto e se colassem, sem querer, em minha boca entreaberta. De repente, uma pétala amarela de um ipê em flor pousou sobre o meu abdômen. Em seguida, sua mão então se pôs sobre a minha, sobre minha roupa, que aos poucos também saía de mim. Depois, foi a vez de seu corpo todo me cobrir inteira. E até agora não sei a razão de ainda não ter acordado. Não faço a mínima idéia.

- Mas tudo isso não foi simplesmente um sonho. Vivemos há não mais que algumas horas. Foi ótimo, talvez inacreditável, levando-se em conta o tempo que levamos para nos reencontrarmos. Por mais que até possa parecer, não foi um sonho.

- Dizem que todos os sonhos têm um significado. O que será que este agora quer dizer? Minha avó costuma contar que sonhar com copo é quase sempre sinal de uma vida próspera e feliz. Para isso, o copo sonhado precisa estar cheio. Caso esteja vazio, quer dizer que a pessoa pode mudar de casa ou de emprego nos próximos dias, semanas ou meses. Se o copo estiver quebrado, é presságio de inquietação. Não me lembro de já ter sonhado com um copo. Mas numa noite, tive um pesadelo estranho. Eu ouvia gritos e não sabia de onde vinham. E embora procurasse por todos os cantos da casa vazia, eu não via nada. Amanheceu e fui procurar no livro da vovó o que aquilo significava. Assustei-me quando li que eram péssimas notícias a caminho. Bastou isso para que eu passasse o resto do dia pensando em tal hipótese e perguntando-me quais notícias seriam essas. E é bem provável que seja por causa desse medo de saber de fato quais serão elas é que não queira abandonar jamais esse sonho que estou tendo junto de você.

- Mas os sonhos, bem como a própria vida, uma hora terminam.

- Não este, que se for mesmo sonho, vou rezar para que nunca acabe. Temo o que pode me acontecer quando acordar, os maus presságios anteriores e o que de ruim pode estar por vir.

- E eu? Por acaso, também estaria sonhando contigo?!

- E por que não? Escolha me deixar aqui em casa e ir embora. Acorde de seu sono tranqüilo e espere para me rever de novo, se é que eu vou continuar existindo.


Diante dessa afirmação mais contundente, resolvi ligar o carro para que voltássemos à beira do riacho, onde seus sapatos nos esperavam e onde aquela tarde de domingo parecia sem fim.

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