ironia, ainda que tardia

Wednesday, March 23, 2005

O Diário

Daniel Soleil Noir

Poucas coisas no mundo são piores que a insônia de uma mulher. Pelo menos no meu caso, é como se eu chegasse a uma menopausa prematura, surgida repentinamente em meio aos meus vinte e cinco anos. São calores que me tomam e me arrebatam, fazendo-me girar e girar em cima de lençóis empapados de suor. Esse, por si só, talvez já fosse motivo para que eu escreva esta presente carta-testamento. E que fique claro: trata-se apenas de um testamento, tão prematuro como tudo em mim, que sempre cismo de acontecer antes da hora. É bom que se diga que não estou deprimida, como a princípio se suponha. Tenho tanta vida em mim que isso logo se transforma nessa ansiedade que me impede de dormir neste momento de desespero por não poder dominar o tempo.

E deixo, como único bem, o diário que venho mantendo desde janeiro. Justamente a quem confesso a minha vida todos os dias, sem que haja a necessidade de qualquer espécie de contrição ou penitência. Um lugar cujo horizonte é composto por linhas azuis sobre um fundo imaculado, pronto para contar com a presença das palavras que aos poucos vão relatar um pouco de mim mesma. Eu; esse alguém, essa única pessoa com acesso permitido aos meus próprios relatos, pelo menos enquanto eu estiver viva. Somente depois disso eles poderão cair em mãos alheias, serem folheados até que se encontre uma seqüência lógica para tantas memórias instantâneas, impressas dia-a-dia num afã irreversível. Desse modo, haverá quem venha a me conhecer depois de morta, invejar-me até. E haverá também quem se reconheça e que se arrependa de nunca ter feito aquilo que ainda faço de mim.

As páginas em que escrevo o diário, no entanto, não se prestavam a este fim anteriormente. Eu havia comprado uma agenda, na verdade. Em uma dessas lojas caras, bem no centro da cidade. Cada página representava um dia, a data no topo e um mini-calendário, no canto, do mês em que se deveria estar. Mas, por incrível que pareça, agendas nunca me foram úteis. Elas não servem para pessoas que, como eu, não têm compromissos. Para mim, o agora importa mais que tudo, e o amanhã não passa de uma distante promessa, sobre a qual prefiro não pensar. Decidi então transformar a agenda em um diário, subvertendo seu sentido original como já me acostumei a fazer com tudo e todos que, inadvertidamente, cruzam o meu caminho.

O problema é que, logo no primeiro dia, percebi que transformaria também, de alguma forma, o sentido da palavra diário. O relato do dia 10 de janeiro ultrapassou a página destinada àquela segunda-feira. Invadiu o dia 11, seguiu pelo dia 12 e, nessa seqüência, acabou apenas lá para o dia 15. E, quando me dei conta, já era tarde. Só me restaria perguntar o que faria para relatar aqueles dias todos já indevidamente preenchidos. Onde eu escreveria o que ainda estava para acontecer na terça, na quarta, na quinta. Depois de refletir por alguns minutos, decidi continuar escrevendo na seqüência de onde havia parado, ignorando mais aquela convenção. Descrevendo o dia 12 a partir do dia 16. E assim por diante. E onde quer que ele terminasse, eu escreveria o dia seguinte, mesmo que isso resultasse registrar meados de março no espaço destinado ao princípio de abril.

Porque para mim os meus dias são tais, que tudo o que faço em único dia talvez não caiba no período de vinte e quatro horas. Mas é dessa forma que eu vivo. Só assim consigo viver. Como toda mulher, aliás, deveria ser. Para, enfim, virar o jogo do patriarcado ou sei lá o que. Tenho plena consciência de que o preço disso é o de não caber em mim mesma. Pois não caibo. E procuro estender minha vida na vida de outras pessoas, para as quais me expando. O resultado disso é ser bem mais que simplesmente Helena. É me confundir, de repente, com o Eduardo de todas as noites ou com a Bárbara de todas as tardes. Afinal de contas, sou também o que eles são. E o que vivo, entrelaçada a eles, não cabe mesmo em único dia. Embora sempre venhamos a (ou tentamos) condensar tudo, é impossível, todavia, condensar o relato, motivo para que eu precise de mais páginas, de mais “desses dias de papel” para contar.

Mas há algo de ruim nisso. As páginas do meu diário, com o passado confundindo-se deliberadamente com o futuro, acabarão antes que o ano acabe. Talvez em junho, talvez em julho, talvez agosto. Numa metáfora que me faça notar o possível desgosto que pode haver em tamanha precipitação. O aspecto mórbido a que pode chegar esse meu frenesi. Essa minha loucura de viver tudo: o que para muitos se leva quase uma vida, feito e vivido por mim em único dia. A hipótese de que a própria vida também possa acabar antes da hora, por mais que eu saiba que isso possa ocorrer. É com essa realidade que não me conformo e é também o que me deixa insone. Pois antecipo tudo o que posso e não deixo nada para amanhã. Por esse motivo, ouso invadir as páginas dos outros dias do diário. Há tanto do que foi vivido e que não pode se perder...

Como há Eduardo invadindo-me a cona apertada, mergulhando em minhas entranhas, matando-me de contentamento como eu jamais havia sonhado antes. O seu amor era um misto de indecente e violento; parecia realmente ter a intenção de me matar, a ponto de me fazer rezar em voz baixa, junto ao seu ouvido, implorando para que me matasse de verdade em seus abraços, dentro dos quais minhas costas sempre ficavam marcadas. Minha pele, sempre delicada, branca, avermelhada de repente por conta de sua força em me manter recostada junto a seu peito suado. Peito, que por sinal, sempre me fora um enigma. Que possuía uma longa cicatriz que por pouco não escorria também para o terreno de seu abdômen forte. Houve uma vez em que ousei perguntar o que causara tamanha fenda em sua pele e ele relutou em confessar. Indaguei novamente, com lascívia escorrendo pelo canto dos meus lábios e com a alma imersa em libido. Daí ele me disse que aquilo fora resultado do dia em que outra mulher tentou lhe roubar o coração, jurando a si mesma, e a quem desejasse ouvir, que jamais o devolveria. E a tal mulher chegou a rasgar seu peito, mas ele a impediu de completar seu intento. Ninguém lhe roubaria o coração ou tentaria fazê-lo impunemente. E, graças a isso, passou a traí-la comigo. Porque, conforme ressaltou também, era livre para viver o que quisesse, como quisesse, com quem quisesse. E era assim que eu me sentia a cada noite em que me encontrava nua sobre a cama de um alguém desconhecido.

E eu, um dia desses, encontrei-me livremente nua junto de Bárbara, num antro qualquer, perdido nos labirintos da periferia. Encontrei, por tabela, a doçura que talvez toda a mulher ainda procure em cada amor, e gozava ainda de maior liberdade por achar essa doçura por intermédio de outra mulher, uma que não fazia segredo algum de que também me amava. Recordo-me da primeira vez em que beijou a minha boca, sem disfarçar a gula de me querer inteira. E, logo em seguida, ela se afastou um pouco, não o bastante para que nossos hálitos deixassem de se confundir, mas o suficiente para sussurrar seus versos de uma poesia tresloucada e não menos apaixonada. Bastaram, contudo, alguns segundos para que eu a calasse com meu seio exposto e vulnerável; vulnerável como sempre gostei de me sentir. Ela, por sua vez, não se recusou a sugar-me a alma em forma de seiva e a me matar por um átimo até que eu a sentisse como uma filha. Eu não a queria como uma filha e, para apagar (ou deflagrar) nosso incesto, abracei sua cabeça com minhas coxas, com minhas ancas que fremiam sem parar e que teriam o furor daquele instante intensificado quando ela alcançasse, com a boca, a minha essência feminina.


A qual dos dois, entretanto, haverei de deixar o meu diário? Pois já que a presente missiva se trata, mais exatamente, de um testamento, falta apenas preencher mais esse requisito para que se saiba a qual deles deixarei esse meu legado de ser mulher. Não qualquer mulher, mas uma mulher chamada Helena. Bárbara ou Eduardo, quem haverá de ficar de posse dos meus dias quando eles já não me pertencerem? Justo eu, que segui os caminhos tanto de um como de outro para desrespeitar as fronteiras do tempo racionalmente determinado, para chegar a uma nova espécie de nirvana. Em suma, para viver do modo que melhor me conviesse. Viver como todo o ser humano deveria ter a obrigação de fazer. Livre das amarras do que se define como civilizado. Livre de tudo o que é imposto. Livre como sempre fiz questão de me lançar de cabeça na vida.

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