ironia, ainda que tardia

Friday, March 18, 2005

A essência de Ana

Daniel Soleil Noir

Ana chegou ao final da tarde e não encontrou sinal algum de que Marco ainda estivesse em casa. As cortinas da sala, feitas de um tecido branco, estavam fechadas. Assim como estavam as portas dos cômodos. Feitas de uma madeira escura, deixavam no ar a sensação de que quem morava ali talvez tivesse partido para uma viagem longa. E que se preocupara com cada detalhe antes da partida. Com a válvula do gás devidamente desligada, com a lâmpada acesa do vestíbulo para enganar os possíveis ladrões. O problema é que, se esse fosse mesmo o caso, Ana não sabia da viagem. Por essa razão, esperava encontrá-lo como sempre o fazia: de pé, vestido em uma camisa branca cagada de tinta, e diante de uma tela sobre a qual ele imitava uma pintura barroca.

Mas Marco não estava. Ela subiu as escadas com cuidado antes de chegar ao quarto em que ele costumava pintar. E lá, a mesma coisa. As venezianas trancadas, porém, tinham mais gravidade que as cortinas da sala. Do cômodo, o que se enxergava eram apenas os vultos dos móveis, da cama encostada junto à parede, da cômoda em mogno, do abajur, da mesa de cabeceira. Os quadros pregados, aliás, pareciam mais indecifráveis que antes: as pinceladas claras, menos claras; as mais escuras, ainda mais escuras. Ana logo saiu e apressou-se em recostar a porta sem fazer barulho. No banheiro contíguo, viu alguns vestígios de que a saída de Marco não se dera havia muito tempo. Haviam restado alguns pêlos na pia de seu último barbear. E o vidro do box ainda estava molhado, suado de vapor, com as iniciais dele escritas e também quase apagadas.

Depois de descer as escadas, e estampando um ar de derrota em seu semblante, Ana foi até a cozinha imaginando o intento de tal viagem, sobre a qual não tinha mesmo sido comunicada. Marco vivia se perguntando a razão de sua própria vida, o motivo para que essa mesma vida o fizesse “gozar” de tanta infelicidade e lamento, mesmo após momentos de alegria que antes pareciam sem fim, uma eterna promessa de felicidade. Marco acreditava-se sozinho em tais indagações, mas porque nele essas perguntas eram mais insistentes, assim como era insistente também o sobe-desce dessa montanha-russa. Havia a solidão daquela casa para acentuar e aumentar o grau de sua dúvida. E havia a própria Ana. Ambígua. Sem querer se desvendar por completo, sem querer se mostrar, mas mostrando somente o que lhe era conveniente. Tanto de sua alma quanto de seu corpo. Ao pobre diabo ao qual relegava o papel de amigo e que muitas já chamaram de amante.

Os olhos de Marco enxergaram Ana pela primeira vez em uma estação de trem. Era uma manhã de muito sol e a paisagem devastada aumentava a claridade. As casas na encosta de um morro não muito distante, ofuscadas, estavam como que apagadas do horizonte de quem se detinha, à espera do trem, a observá-las. Naquela época, Ana tinha um recato excessivo. Uma timidez irremediável. Marco, por sua vez, possuía um tostão furado no bolso e um otimismo sem explicação. Um otimismo do qual não se conhecia a causa, apenas o efeito: um sorriso confiante impresso na face, a certeza de que as respostas para suas dúvidas estavam ali na esquina, ou mesmo entre aqueles dormentes, distantes um do outro ao sabor do calor do sol. O mesmo que tornava Ana e Marco quase invisíveis um para o outro, pelo menos até a chegada do trem e de sua sombra feita de metal.

Entraram no vagão, rumo à capital. Não se conheciam até então. De vista, quem sabe. Mas sentados um ao lado do outro, puxaram conversa e foram, desse modo, até o fim da linha. Onde trocaram endereços, telefones e votos de um bom retorno para quando voltassem à cidade de onde haviam partido.

E voltaram. Marco gostou dos cabelos de Ana, cacheados, presos em um rabo de cavalo desengonçado, e de uma cor ambígua, que possivelmente ficava entre o ruivo e o loiro. Gostou também de sua boca grossa, embora ainda não revelasse a si mesmo o desejo de beijá-la. Queria, por sinal, decifrar-lhe os olhos dissimulados, a expressão que não lhe deixava pistas do que ela estaria pensando. Mas ela gostava dele. E a recíproca também era verdadeira. Ana desejava sentir com a ponta dos dedos a aspereza da barba de Marco, ouvir seus devaneios sobre poesia, loucura e sobre o sentido da vida. E não queria perder a chance de ainda sonhar com isso. De, num impulso automático, ceder ao que todos cedem. Marco, contudo, já não conseguia evitar o impulso de querer retratá-la. Pincel, tinta, uma tela e ela à sua frente, com o mesmo recato, os mesmos cachos que, soltos, escorreriam sobres seus ombros crus, e o olhar ambíguo, que continuaria a lhe marcar a expressão mesmo quando transformado em arte.

No entanto, numa noite, a quinze centímetros um do outro, Ana negou o pedido de Marco para que a retratasse. Ele perguntou qual a razão daquela negativa, crente de que ela não pudesse verbalizá-la, mas temendo ao mesmo tempo que não passasse simplesmente de uma pura e simples rejeição. Estavam no meio daquela sala, a mesma sala que Ana encontrou vazia naquela tarde de março. E a pouca luz ao redor tornava visível muito pouca coisa de ambos. O que se precisava saber de fato tinha que ser confessado, caso contrário, permaneceria preso, para sempre, no coração dos dois. E Ana confessou que temia que a pintura lhe revelasse a essência para além da aparência que convencionara mostrar. Que Marco descobrisse sobre ela o que ela nem sabia. E que dessa forma ela se tornasse vulnerável, não apenas aos olhos dele, bem como aos olhos de qualquer um que visse o quadro. Ela disse tudo isso e foi embora, prometendo voltar um dia, como naquele dia acabou voltando.

Antes, Marco havia tentado demovê-la daquela desistência. Argumentou que retrataria exatamente sua característica mais marcante, que percebera logo no primeiro encontro: sua ambigüidade, o que não lhe dava idéias de como desvendá-la. E acreditava que sequer a pintura poderia, ou precisaria, fazê-lo.


Apesar de tudo, Marco foi obrigado a aceitar a decisão de Ana, cujo argumento inicial foi capaz de roubar-lhe a inspiração num primeiro instante. Instante que se concluiu no exato momento em que Ana encontrou a casa vazia. Os dias e dias em que Marco foi em busca de sua própria essência, não se sabe onde, com o intuito de retomar o sentido de sua arte e de sua esperança, que também já se perdera.

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